CONTEXTUALIZAÇÃO
Deparados com a pronúncia por parte do Tribunal Constitucional, pela segunda vez, no sentido da inconstitucionalidade da lei de despenalização da eutanásia, parece que o “dia D” para esta teima em chegar.
Contextualizando, o projeto de lei da eutanásia havia sido aprovado pela Assembleia da República a 29/01/2021, tendo, de seguida, sido submetido para promulgação ao Presidente da República. O nosso Presidente decidiu pedir a intervenção do Tribunal Constitucional por acreditar, dada a sensibilidade e novidade da matéria, ser necessária uma verificação da conformidade daquela lei com a nossa Constituição. Por sua vez, o Tribunal Constitucional pronunciou-se pela inconstitucionalidade de algumas das normas, tendo devolvido o projeto legislativo à Assembleia da República. Esta aprovou novo projeto de lei, a qual viu um veto político do Presidente da República com fundamento na existência de claras inconsistências. Novamente a Assembleia da República reuniu esforços e aprovou novo projeto de lei, o qual, uma vez apresentado ao Presidente da República para promulgação, suscitou nova intervenção do Tribunal Constitucional. Ora, o Tribunal Constitucional pronunciou-se, novamente, a 30/01/2023, pela inconstitucionalidade de algumas das normas da lei da eutanásia, pelo que, esta volta, mais uma vez, à Assembleia da República para alterações.
Mas, afinal, quantas mais viagens entre a Assembleia da República, o gabinete do Sr. Presidente da República e o Tribunal Constitucional esperam a esta lei que tão arduamente se esforça para ser aprovada?
A DISCUSSÃO
A palavra eutanásia significa, historicamente falando, “boa morte”, apontando no sentido de uma morte tranquila, sem sofrimento. O termo não tinha, à época, os múltiplos significados que lhe são hoje atribuídos. No quadro atual podemos distinguir a eutanásia ativa da eutanásia passiva – a primeira corresponde ao ato de intervenção direta e deliberada com o propósito de terminar a vida de um doente; a segunda, por sua vez, consiste na ausência de prática de atos desproporcionados que prolonguem a vida além do que era natural ou a retirada de determinados recursos que mantinham a pessoa viva.
A discussão social, partidária e teórica subjacente a esta lei confronta duas posições: uma delas, favorável, que entende que a lei da eutanásia é uma decorrência necessária do direito à liberdade de escolha e de autodeterminação pessoal; outra, desfavorável, que considera que está a ser criado um “direito à morte”, o qual choca diretamente com o direito à vida que é previsto na nossa “lei das leis”, a Constituição da República Portuguesa, como “inviolável”.
Porém, as questões que as idas e vindas, para trás e para a frente, que a lei da eutanásia tem colocado vão agora muito além destes polos ideológicos.
Atualmente o nosso quadro jurídico prevê que são puníveis o crime de “homicídio a pedido da vítima”, segundo o qual quem matar uma pessoa, motivado por pedido sério, instante e expresso desta, é punido com pena de prisão até 3 anos; e o crime de “incitamento ou ajuda ao suicídio”, estipulando que quem incitar outra pessoa a suicidar-se ou lhe prestar ajuda para esse fim é punido com pena de prisão até 3 anos.
A (proposta de) lei da eutanásia procura alcançar, precisamente, a despenalização da morte medicamente assistida, ou seja, pretende que esta deixe de ser punida criminalmente quando praticada em determinadas condições: 1) por “decisão da própria pessoa, maior”, 2) “cuja vontade seja atual e reiterada, séria, livre e esclarecida”, 3) que se encontre “em situação de sofrimento de grande intensidade”, 4) “com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença grave e incurável”, 5) “quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde”.
Assim, a morte medicamente assistida pode ocorrer quer por suicídio medicamente assistido, quer por eutanásia (ativa). Ou seja, a lei pretende que deixe de ser punida a morte que ocorre por “autoadministração de fármacos letais pelo próprio doente, sob supervisão médica” (a morte que pressupõe a ação direta do doente, o qual apenas é ajudado pelo profissional de saúde) e a morte que ocorre pela atividade direta do profissional de saúde, sendo ele o administrador do fármaco letal.
Com efeito, a intenção da anunciada lei da eutanásia é precisamente instituir a eutanásia no nosso ordenamento jurídico, fazendo com que aqueles dois tipos de crime suprarreferidos deixariam de ser punidos por lei penal quando praticados naquelas condições.
O CAMINHO
Surpreendentemente já não parece ser aquele binómio teórico a favor ou contra a eutanásia que tem vindo a impedir a aprovação desta lei, mas sim a própria (in)determinabilidade dos requisitos que esta exige. Vejamos:
Na primeira pronúncia de inconstitucionalidade por parte do Tribunal Constitucional, em 2021, este considerou que existia uma insuficiente densificação e determinabilidade da lei, ou seja, considerou que os requisitos exigidos correspondiam a realidades altamente indeterminadas e que levariam a uma aplicação da lei de forma pouco precisa. Por sua vez, em 2023, dois anos depois, o Tribunal Constitucional volta a pronunciar-se pela inconstitucionalidade de algumas normas precisamente com o mesmo fundamento – nas suas palavras, por “violação do princípio da determinabilidade das leis”.
Traduzindo por miúdos, porque é que a lei da eutanásia anda constantemente de um lado para o outro? Aprovada, vetada, declarada inconstitucional, mas não, como desejado por muitos, em vigor?
Apesar de algumas críticas, diga-se que todos estes “passeios” pelas várias entidades é, não só legalmente admissível, como socialmente benéfico.
Se é verdade que nos encontramos um passo atrás de alguns países no que diz respeito à legalização da eutanásia, não é menos verdade que esta toca em princípios estruturantes da identidade de um país (veja-se, a título de exemplo, os princípios fundamentais implicados como o direito à vida, o direito à liberdade de escolha, o direito à autodeterminação, etc.) e em questões de grande importância social (a própria vida, as relações familiares e o sentimento de perda, o sofrimento físico e/ou psicológico, a saúde, etc.).
É especialmente esta ligação com pontos tão estruturantes de um Estado e dos seus cidadãos que vem justificando que a lei da eutanásia ainda não tenha sido, em definitivo, aprovada no nosso país.
Por exemplo, um dos requisitos para a não punição da morte medicamente assistida é que a pessoa se encontre numa situação de “doença grave e incurável”. Porém, uma doença que é incurável hoje pode deixar de sê-lo amanhã, em virtude dos avanços da medicina.
Outro dos requisitos é que o doente se encontre numa situação de “sofrimento de grande intensidade”. O que quer isto dizer? É um sofrimento físico ou psicológico? Como é que se afere o grau de sofrimento de alguém? Ou, mais ainda, como se determina a grandeza da intensidade? Quão “grande” é preciso ser o sofrimento? Convenhamos que uma situação poderá causar “grande” sofrimento para mim e não para os leitores, ou vice-versa.
E, como se duas camadas de mal não fossem suficientes, podemos sempre juntar uma terceira à equação – quão “livre” pode ser a vontade de alguém de decidir a sua morte quando se encontra instigado por uma situação de “sofrimento de grande intensidade”? Por defeito (ou virtude – que ainda é isso que nos mantém fiéis a nós mesmos) humano sabemos perfeitamente que as nossas decisões são altamente turvadas pelos nossos sentimentos e estados psicológicos. E, ainda, quão “reiterada” é preciso ser essa vontade, ou seja, quantas vezes é preciso manifestá-la?
Ora, toda esta discussão, apesar de parecer irrelevante, é, do ponto de vista jurídico, altamente necessária uma vez que falamos do ato de tirar a vida a alguém, sendo a vida o “direito dos direitos” (pois, sem ele, não existe nenhum dos outros).
E, também por defeito, o ordenamento jurídico não se pode contentar com imprecisões, indefinições (ainda que parciais) ou conceitos voláteis, precisando de acautelar o máximo (que será sempre o mínimo, comparando com os casos que a realidade nos trará) de situações possíveis.
Porém, a lei da eutanásia, alavancada numa posição já mais generalizada da sociedade sobre este tópico, tem-se mostrado persistente, pelo que, acredito que caminhamos (a passos mais ou menos largos, dependerá do conceito do tamanho da perna de cada um) para a sua aprovação, alcançando assim, à semelhança de alguns países europeus, a despenalização da eutanásia em Portugal.
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