“Memória silenciada”: Portugal e a escravidão

“Reconhecer a violência do passado colonial não significa rejeitar a história de Portugal.”

Tempo de leitura: 5 minutos

“Temos que pagar os custos. Há ações que não foram punidas e os responsáveis não foram presos? Há bens que foram saqueados e não foram devolvidos? Vamos ver como podemos reparar isso”1. Assim declarou Marcelo Rebelo de Sousa, presidente de Portugal, em evento com correspondentes estrangeiros em 23 de abril de 2024. Poucos dias depois, o governo português negou a existência de qualquer processo de reparação às ex-colônias2.

A participação de Portugal na escravidão moderna é antiga e profunda. De acordo com a plataforma Slave Voyages, que reúne dados de pesquisadores de diversos países, entre os séculos XVI e XIX, cerca de 12 milhões de africanos foram sequestrados e enviados como mão de obra para as Américas. Aproximadamente metade desse total – em grande parte originária da costa ocidental da África – foi transportada em navios portugueses3.

O tráfico transatlântico de pessoas escravizadas foi um comércio global que, embora envolvesse outras potências europeias até meados do século XIX, teve início e forte protagonismo do império português4. Diferentemente das formas de cativeiro da Antiguidade ou da Idade Média, a escravidão moderna se destaca por sua escala colossal e por uma lógica racial dogmatizada, sustentada por discursos religiosos que legitimavam a associação automática entre ser negro e ser escravizado.

Segundo o historiador Fernando Novais, o comércio atlântico de pessoas escravizadas foi decisivo para a economia, a acumulação de capital e a formação de Portugal como o primeiro grande império europeu da modernidade. A alta lucratividade do tráfico impulsionou a exploração de africanos nas lavouras escravistas do continente americano, e os portugueses tiveram papel pioneiro nesse sistema profundamente violento5.

Ainda hoje, Portugal enfrenta de forma lenta e hesitante a memória ligada à escravidão. Em contraste, a chamada “era dos descobrimentos” permanece amplamente celebrada em monumentos espalhados pelo país6. Um dos exemplos mais emblemáticos é o Padrão dos Descobrimentos, em Belém, que exibe figuras de monarcas, navegadores e clérigos mirando o Atlântico. A mensagem é clara: a memória do colonialismo português segue apoiada em narrativas positivas, centradas em ideias como “civilização”, “catequização” e “progresso”.

O Padrão dos Descobrimentos foi encomendado durante a ditadura salazarista como expressão arquitetônica do Estado Novo (1933–1974)7. O monumento transforma a história complexa e violenta da expansão marítima portuguesa em uma narrativa épica e harmoniosa, formulada para justificar a continuidade do império colonial no século XX. Sua monumentalidade e a disposição hierárquica das figuras reforçam a ideia de um “destino imperial”. Assim, evidencia-se um projeto político de memória: exaltar supostos heróis enquanto se silencia a violência, os massacres e a exploração que sustentaram o império ultramarino.

Por outro lado, são raros os monumentos e as iniciativas estatais que abordam de forma crítica o papel histórico de Portugal na consolidação da escravidão e do tráfico de africanos. Mesmo materiais didáticos que mencionam o tema costumam destacar que os portugueses foram os primeiros a abolir a escravidão, mas deixam em segundo plano um ponto fundamental: essa proibição se aplicou, num primeiro momento, apenas ao território metropolitano e às colônias da Índia. Nas demais possessões, o cativeiro continuou. No Brasil, por exemplo, o tráfico transatlântico persistiu após a independência, em 1822, e só foi efetivamente encerrado em 18508. A abolição no Brasil ocorreu oficialmente apenas em 1888, não como um gesto benevolente da princesa Isabel, mas como resultado da pressão do movimento abolicionista aliada às lutas contínuas das pessoas escravizadas por sua liberdade9.

Efetivamente, o único monumento que aborda essa questão em Portugal se localiza no Algarve. O Núcleo Museológico Rota da Escravatura (conhecido como Mercado de Escravos de Lagos) lida com essa descoberta através de uma tensão entre a ciência e a ética da memória. Diversos debates ainda acontecem hoje sobre a organização museológica da instituição, assim como as decisões tomadas acerca das descobertas arqueológicas em outras regiões de Portugal10.

Após anos de adiamentos, foi confirmada a construção do Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas, na Ribeira das Naus, local historicamente marcado pelo desembarque de pessoas escravizadas. No entanto, sua concretização segue sendo postergada, tornando-se um símbolo da dificuldade de Portugal em materializar essa responsabilidade histórica, enquanto a “glória” colonial – representada por monumentos como o Padrão dos Descobrimentos – permanece intacta e amplamente visível11.

Mais do que preservar uma memória monumentalista, Portugal precisa investir em estratégias de reparação que impactem concretamente o cotidiano da população. Isso inclui a incorporação, nos currículos escolares, dos efeitos nocivos do colonialismo nos territórios ultramarinos; a construção de medidas reparatórias aos países do Sul Global, em parceria com outras nações europeias que enriqueceram com sistemas coloniais; e ações eficazes de combate à xenofobia e ao racismo contra pessoas afrodescendentes – uma realidade ainda presente e crescente no país12.

Reconhecer a violência do passado colonial não significa rejeitar a história de Portugal. Como lembra Grada Kilomba, é indispensável investigar a “arqueologia” da existência portuguesa13. Isso exige maturidade política e disposição para encarar o passado como ele foi: mesmo que doa desconstruir o mito, é preciso construir a verdade.


Referências

  1. Presidente de Portugal reconhece culpa por escravidão no Brasil. Agência Brasil, 24 abr. 2024. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2024-04/presidente-de-portugal-reconhece-culpa-por-escravidao-no-brasil. ↩︎
  2. Governo de Portugal nega existência de processo de reparação por crimes contra ex-colônias. G1, 27 abr. 2024. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2024/04/27/premie-portugues-afirma-que-nao-esta-em-curso-nenhum-processo-de-reparacao.ghtml. ↩︎
  3. Slave Voyages. Disponível em: https://www.slavevoyages.org/assessment/estimates#tables. ↩︎
  4. Luiz Felipe de Alencastro. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul: séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, sobretudo o capítulo 1. ↩︎
  5. Fernando Novais. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1888). São Paulo: Editora 34, 2019. 2a ed., pp. 53-54. ↩︎
  6. Quem tem medo das marcas do colonialismo no espaço público? Publico, 26 jun. 2016. Disponível em: https://www.publico.pt/2016/06/26/culturaipsilon/noticia/iconografia-e-colonialismo-1736078. ↩︎
  7. A rosa-dos-ventos que integra o monumento foi um presente do regime de apartheid sul-africano ao governo de Salazar.Ver: Confrontar o passado racista de Portugal. Amar, 20 jun. 2022. Disponível em: https://revistamar.com/mundo/sociedade/emigracao-imigracao/confrontar-o-passado-racista-de-portugal/. ↩︎
  8. Portugal e a difícil memória do tráfico de escravos. DW, 25 mar. 2023. Disponível em: https://www.dw.com/pt-002/portugal-e-a-dif%C3%ADcil-mem%C3%B3ria-do-tr%C3%A1fico-transatl%C3%A2ntico-de-escravos/a-56982433#:~:text=Trata%2Dse%20de%20uma%20cria%C3%A7%C3%A3o,mais%20nova%20de%20Evalina%20Dias.&text=Beatriz%20Gomes%20Dias%20%C3%A9%20membro,Moreira%2C%20que%20%C3%A9%20tamb%C3%A9m%20historiadora. ↩︎
  9. Jacob Gorender. A escravidão reabilitada. São Paulo: Expressão Popular, Fundação Perseu Abramo, 2016. ↩︎
  10. Arqueóloga admite mais cadáveres de escravos em Lagos, mas escavações acabaram. RTP, 11 dez. 2024. Disponível em: https://www.rtp.pt/noticias/cultura/arqueologa-admite-mais-cadaveres-de-escravos-em-lagos-mas-escavacoes-acabaram_n1620881. ↩︎
  11. Câmara de Lisboa confirma: Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas vai ficar na Ribeira das Naus. Observador, 10 jun. 2025. Disponível em:
    https://observador.pt/2025/06/10/camara-de-lisboa-confirma-memorial-de-homenagem-as-pessoas-escravizadas-vai-ficar-na-ribeira-das-naus/. ↩︎
  12. O relato de mães brasileiras de crianças atacadas em Portugal: ‘Atravessei um oceano pra dar vida melhor e me frustrei’. BBC Brasil, 24 nov. 2025. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cql9lppxxq5o. ↩︎
  13. Mostra de Grada Kilomba em Inhotim expõe a arqueologia da vergonha. Estado de Minas, 14 abr. 2024. Disponível em: https://www.em.com.br/cultura/2024/04/6837538-mostra-de-grada-kilomba-em-inhotim-expoe-a-arqueologia-da-vergonha.html#google_vignette. ↩︎

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Historiadora e professora brasileira. Mestra em História pela Universidade de São Paulo, onde realiza doutoramento sobre temas relacionados com escravidão, abolição, imperialismo e cristianismo. Investiga memória, colonialismo e relações entre religião e poder.

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