Quando falamos em habitação a tendência é desanimar. Num país em que a idade média para sair de casa se situa aproximadamente nos 29 anos (Sic Notícias & Lusa, 2025), resta-nos pegar nos nossos filhos, na mobília e sair de casa dos pais, assim que atingirmos o prazo de validade. Exagero, com um propósito desesperante. A verdade é que vivemos algo mais do que uma “simples” crise económica ou política. Estamos perante uma crise psicológica coletiva, cujo epicentro é emocional e a incidência é intergeracional, ou seja, foi uma preocupação passada, presente e será futura. Ouvimos as queixas dos nossos pais ou até dos nossos avós e é curioso – ou inquietante – perceber que os temas se repetem.
Peço-vos que mergulhem comigo enquanto olham em redor, pois hoje pretendo fazer uma panorâmica conjunta sobre o impacto da habitação e as suas repercussões psicológicas e transgeracionais: uma ansiedade passada de mão em mão.
Comecemos por recuar e recordar o termo “trauma intergeracional” segundo o olhar de Henriques (2019). Peço-vos que se foquem na opressão sistémica que sentem, a que vem das vossas famílias (Silva, 2023). Foquem-se também nos vossos reflexos corporais e mentais ao observarem colegas de trabalho, familiares e amigos que não conseguem sair ou mudar de casa há vários anos, ou que foram despejados. A competitividade aumenta na compra de uma casa e, com ela, as despesas todos os meses durante uns 10 anos, idealmente. O nosso coração acelera e as nossas mãos ficam frias de repente, mas nada se passa connosco… por enquanto. Meus caros, a ansiedade surge quando se perceciona uma ameaça e, de facto, esta é iminente. A mera possibilidade de nos visualizarmos nesse lugar é, por si só, sufocante, ansiogénica.
A autora (Henriques, 2019) refere no seu artigo, baseado num estudo realizado em 2015, ter descoberto alterações no nível de cortisol nos filhos de alguns sobreviventes do Holocausto. Isto significa que se passaram anos e a resposta ao stresse por parte da geração pós-Holocausto ainda sofreu alterações epigenéticas. Será possível, então, que a crise portuguesa atual marque de tal forma a nossa geração ao ponto de afetar diretamente o nosso Sistema Nervoso e Endócrino e, consequentemente, moldar os de futuras gerações? Ora, temos de ter em conta o que é que compõe a atual crise, ou seja, todos os entraves económicos, políticos, sociais, psicológicos (ex.: a adição ao jogo, o consumo de álcool, aumento da solidão, etc.), e outros que estejam a rever nas vossas cabeças enquanto leem estas palavras. Deixo-vos esta ideia para que, no futuro, possamos olhar para trás em conjunto e refletir sobre as consequências desta epidemia nacional que incide sobre a saúde mental e bem-estar da população portuguesa.
Chegamos a casa no final do dia e, ao ligar a televisão, é como se ouvíssemos um CD riscado pelas medidas “inovadoras” implementadas pelo governo. Não somos políticos, mas muitos de nós sentem que nada mudará, que o erro é sistemático. Não nos sentimos vistos, reconhecidos, compreendidos e a revolta instala-se.
Confesso que nunca apreciei o sobe e desce nos parques infantis, ainda assim, se tivesse de comparar a sensação de ter uma casa em Portugal, seria essa. Ora são as flutuações de preços, ora é a instabilidade emocional e financeira de ter de fazer contas semanalmente para que sobre dinheiro no final do mês porque, afinal, precisamos de estímulos saudáveis (jantar com amigos, uma ida ao cinema ou ao teatro: de interação social, sair à rua!), ora é o esforço laboral que não leva a um verdadeiro equilíbrio, porque… se formos a fundo… não é sobre isso. Somos seres biopsicossociais, não estamos neste mundo apenas para trabalhar.
Esta preocupação extrema está a aumentar a ansiedade social, e aqui refiro-me a uma ansiedade coletiva… se bem que a tendência a longo prazo é o isolamento progressivo, sintomatologia depressiva, insatisfação pessoal, dificuldade em manter ou criar relações afetivas, entre outros. Talvez seja mesmo ansiedade social, generalizada até (American Psychiatric Association, 2013). A preocupação incessante com o futuro, com o rumo da política, das guerras e do posicionamento de Portugal perante todos estes temas. O povo procura-nos (psicólogos) com esta taquicardia constante, que os torna conscientes da ilusão que é “estar sobre controlo”, da impotência perante o destino, a sua imprevisibilidade e com a dificuldade em resistir à frustração, saber estar e lidar com ela. É como se tivéssemos sido atacados por uma “fadiga moral”, em que a frustração é um estilo de vida e todo este esforço diário parece inútil. Estou a divagar, creio que me compreendem.
Com isto, aprofundando o impacto psicológico, quero dizer-vos que o peso da responsabilidade – por vezes, até surge um sentimento de culpa – é gigantesco e desgastante. Já não é tão comum o laissez-faire social; antes o estatal, que prevalece perante a pobreza ascendente dos portugueses. Estão hoje mais de dois milhões de portugueses vulneráveis a ficar em situação de pobreza, fora os que não estão contemplados nos estudos nacionais (Lusa, 2025). Uma casa é mais do que ter um teto, é um símbolo de autonomia, de segurança, de pertença e de liberdade. E é por isto, meus amigos, que este “trauma” não é apenas económico, é emocional, identitário e herdado. Todos ambicionamos ser autónomos e livres de poder escolher se saímos ou não de casa. O facto de não existir esta escolha é deprimente. A geração mais velha vive nostálgica num país que já não existe e os jovens adultos estão parados no tempo, sem espaço próprio. No meio, surge a “geração sanduíche” (Miller, 1981), os nossos pais são espremidos entre paredes familiares invisíveis. Os avós envelhecem e necessitam de cuidados e nós crescemos sem autonomia e espaço para a ter. Este conformismo cultural é, no fundo, um mecanismo de defesa coletivo, que acaba por ser também um obstáculo à mudança.
É como se as novas gerações crescessem com um fardo emocional desafiante. É difícil manter a esperança perante estas condições – eu compreendo. As crenças nucleares são esboços herdados dos familiares e escapar ao padrão é um malabarismo perigoso. Ao mesmo tempo, é necessário, ainda que aparente ser um desconforto vitalício. Creio que é preciso sobreviver ao desconforto para sabermos que somos capazes de o sentir. Permitam-me partilhar algo que me faz sentido: nos momentos e fases desconfortáveis, é importante apercebermo-nos de que o “desconforto” e o “mal-estar” são guarda-chuvas.
Por vezes, não é fácil identificar as nossas emoções – ou rotulá-las, se preferirem. Mas é por aí que tudo começa: identificá-las, para depois percebermos o que as desperta e qual o seu propósito.
Nesta época difícil, talvez seja importante realçar que o suporte social é extremamente importante. Seja de amigos, familiares ou outros (Zimet et al., 1988), sermos capazes de pedir ajuda ou apoio, seja qual for, é fulcral. Ou relativizem, como vos disse, há quem o faça e resulta. “Estamos todos no mesmo barco” ou “Há quem esteja pior que eu”. Já dizia Sophie Seromenho, psicóloga clínica, num post de Instagram sobre o impacto da internet no sistema nervoso: estamos a “intoxicar o sistema nervoso com medo, raiva e desespero.”. Tem uma abordagem interessantíssima acerca da perceção e da consciência humana. No mesmo post, refere que “Só as pessoas conscientes se assustam com o estado das coisas. […] O mundo […] precisa de pessoas que não desistam de sentir”.
De facto, ter esperança, sentir, evoluir, podem ser escolhas. Por outro lado, permitir que o caos económico e sociopolítico nos consuma parece quase inevitável neste país. Olhamos para a esquerda e estão a falar sobre a ascensão de um partido ou o retrocesso de outro, olhamos para a direita e queixam-se dos abonos ou das estradas. O que aconteceu ao tempo de lazer? Parece que, hoje em dia, é ocupado pelas preocupações e responsabilidades sociais. Sempre existiram e estamos cientes delas, porém, cabe-nos a nós desacelerar e perceber que temos o dever de viver no presente.
Apesar de estar no início da minha carreira como psicólogo, apercebi-me de que muitas pessoas confundem “tempo para mim” com “tempo de ecrã”, “hobbies”, “estar com amigos”, entre outros. Nesses momentos até podemos estar a desfrutar de tarefas que ativam os nossos circuitos de recompensa e libertam neurotransmissores, como a dopamina ou a oxitocina. São efetivamente momentos que apreciamos, mas onde se insere o momento em que estamos em contacto direto com as nossas emoções? O contacto comigo mesmo? Isto é, sem estímulos. Em que momento estamos a trabalhar na nossa autorregulação emocional?
Desaprendemos a ter momentos a sós, a desenvolver a introspeção. Associamos esses momentos à solidão e ao isolamento. Hoje, mais do que nunca, estes momentos são necessários e ajudam-nos a ser capazes de lidar com o desconforto, que mencionei anteriormente.
Termino afirmando que a “cura” começa no reconhecimento da dor comum e não na culpabilização entre gerações. O sentimento de “casa” que perdemos está associado à sensação de ter um futuro. Reconstruí-lo passa por um trabalho coletivo, tanto psicológico como político.
Referências
Sic Notícias & Lusa (2025, 23 setembro). Jovens em Portugal saem de casa dos pais em média aos 28,9 anos. Sic Notícias. Disponível em: https://sicnoticias.pt/pais/2025-09-23-jovens-em-portugal-saem-de-casa-dos-pais-em-media-aos-289-anos-ce58bc8b
Silva, M. (2023). Trauma intergeracional: uma revisão narrativa. [Dissertação de Mestrado]. Universidade de Lisboa. http://hdl.handle.net/10451/58333
Henriques, M. (2019, 26 março). Can the legacy of trauma be passed down the generations? BBC. Disponível em: https://www.bbc.com/future/article/20190326-what-is-epigenetics
American Psychiatric Association. (2013). Diagnostic and statistical manual of mental disorders (5th ed.). https://doi.org/10.1176/appi.books.9780890425596
Lusa (2025, 17 outubro). Portugal mantém dois milhões de pessoas na pobreza, alerta rede-europeia. Observador. Disponível em: https://observador.pt/2025/10/17/portugal-mantem-dois-milhoes-de-pessoas-na-pobreza-alerta-rede-europeia/
Miller, D. A. (1981). The “sandwich” generation: adult children of the aging. Social Work, 26(5), 419–423. http://www.jstor.org/stable/23712207
Zimet, G. D., Dahlem, N. W., Zimet, S. G., & Farley, G. K. (1988). The Multidimensional Scale of Perceived Social Support. Journal of Personality Assessment, 52(1), 30–41. https://doi.org/10.1207/s15327752jpa5201_2






































































































