Capitalismo de Vigilância, Foco Roubado e a Geração Z como Última Frente de Resistência Digital

"Como permitimos que infraestruturas essenciais da vida coletiva fossem transferidas a empresas sem transparência, governação ou verdadeiro controle público?...

Tempo de leitura: 6 minutos

Fomos empurrados para este novo ambiente onde a nossa praça pública já não é uma praça pública, é uma praça privada.” (Zuboff, 2019). A frase da filósofa Shoshana Zuboff — referência central nos estudos sobre capitalismo de vigilância há mais de quatro décadas — resume uma mudança silenciosa: aquilo que um dia foi espaço público tornou-se propriedade privada de gigantes digitais. Não houve tomada pela força. Houve sedução. Não nos tiraram algo. Nós entregámos.

Como estudante universitária de Ciências de Dados e investigadora de temas das humanidades, tenho observado como a hiperconectividade molda hábitos, afetos e perceções. A questão não é só técnica. É civilizacional. Como permitimos que infraestruturas essenciais da vida coletiva fossem transferidas a empresas sem transparência, governação ou verdadeiro controle público?

Zuboff explica que o capitalismo de vigilância não é uma simples evolução tecnológica: é uma mutação histórica que transforma a experiência humana em matéria-prima para extração de padrões. Se o capitalismo industrial explorava a natureza, este explora a subjetividade.

Três perguntas que ela formula ajudam a esclarecer o problema:
– Quem detém o conhecimento?
– Quem decide quem detém o conhecimento?
– Quem controla quem decide quem detém o conhecimento?

Hoje, a resposta passa por poucos nomes — Meta, Google, Apple, Amazon, Microsoft. Empresas privadas determinam como bilhões de pessoas se informam, conversam, procuram ajuda e constroem identidade.

Andamos pelo digital “nus”, como diz Zuboff: expostos, rastreáveis, previsíveis. E essa nudez é mensurável. Em média, o mundo passa entre 6 e 7 horas por dia online, segundo dados globais de 2024. Cada clique, cada pausa, cada deslizar do dedo gera um rastro que alimenta sistemas de previsão comportamental vendidos em tempo real.

Se já leu 1984 (1949), reconhece o cenário de vigilância explícita imaginado por George Orwell. Quase vinte anos antes, Aldous Huxley lançou Admirável Mundo Novo (1932), prevendo um controle baseado no prazer, na distração e na leveza aparente. A era digital combina os dois mundos: a vigilância orwelliana operada pela sedução huxleyana.

A lógica não é apenas registar o comportamento — é moldá-lo. Como aponta Tristan Harris, no documentário O Dilema das Redes, “se você não paga pelo produto, você é o produto”. Mas Jaron Lanier, em Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais, vai além: o que está a ser vendido não é só a nossa atenção, mas as nossas micromudanças de comportamento.

A sensação de foco fragmentado não é falha pessoal. Johann Hari, em Foco Roubado, mostra que existe uma arquitetura ativa desenhada para capturar a nossa atenção. Não é falta de disciplina. É projeto.

Byung-Chul Han, em A Sociedade do Cansaço, argumenta que vivemos numa era em que deixamos de ter um opressor externo. Nós mesmos nos cobramos, nos vigiamos e nos exaurimos. A pressão por desempenho contínuo transforma até o lazer em obrigação. Han também discute como a depressão, o burnout e a ansiedade surgem desse excesso de positividade e autoexigência — sintomas coerentes com um mundo regido por métricas, comparação social e produtividade constante.

A neurocientista Anna Lembke, em Geração Dopamina, explica como estímulos digitais constantes rebaixam a nossa sensibilidade ao prazer e aumentam a dependência. Navegamos pelo feed em busca de novos pequenos picos de dopamina, mas quanto mais buscamos, mais vazios ficamos. Um paradoxo: o sistema que promete conexão intensifica o isolamento.

Essa dinâmica gera uma contradição curiosa. As mesmas plataformas que contribuem para ansiedade, comparação e solidão agora criam ferramentas para detetar crises emocionais — identificando padrões associados a ansiedade, automutilação e tendências suicidas. Tentam curar feridas que ajudaram a abrir.

Mas há um ponto de virada interessante: a Geração Z parece responder de forma diferente.

Dados recentes mostram que:
– Na Europa, quase 70% dos jovens entre 16 e 24 anos afirmam preocupar-se seriamente com privacidade digital.
– Cerca de 60% já ajustaram permissões de aplicativos ou desinstalaram plataformas por motivos de recolha excessiva de dados.
– Nos Estados Unidos da América, mais da metade diz monitorar com frequência o uso que as empresas fazem das suas informações.

Longe da ideia de que “os jovens não se importam com privacidade”, eles criam rotinas de autoproteção: contas privadas, perfis alternativos, círculos reduzidos. Não é rejeição completa da tecnologia, mas uso consciente.

Ainda assim, a dependência permanece. Aproximadamente metade dos jovens afirma que seria difícil abandonar totalmente as redes. Reconhecem o risco, mas tentam recuperar autonomia.

Essa geração nasceu sob vigilância permanente — talvez por isso a compreenda melhor.

O problema, no entanto, não é apenas individual. É estrutural. A desigualdade hoje também é cognitiva: quem entende minimamente como a tecnologia funciona consegue defender-se. Quem não entende, vira matéria-prima.

Algoritmos não refletem apenas desigualdades: reproduzem-nas. O caso do sistema de recrutamento da Amazon, que penalizava mulheres por padrões históricos nos dados, é um lembrete de que a tecnologia carrega vieses invisíveis.

Zuboff questiona: como reorganizar a infraestrutura digital para proteger valores democráticos? A resposta exige política, regulação, educação e novas formas de desenho tecnológico. Não se trata de rejeitar o digital, mas de escolher que digital queremos.

Isso significa defender transparência sobre recolha e uso de dados, apoiar legislações como o GDPR na União Europeia e estimular práticas internas de saúde mental, incluindo pausas, presença, tédio criativo. Privacidade não é nostalgia, é condição para autonomia.

O capitalismo de vigilância transformou a nossa vida íntima em recurso económico. Mas isso não é inevitável. Como diz Zuboff: é impossível separar o capitalismo de vigilância da era digital atual — mas é totalmente possível imaginar uma era digital que exista sem o capitalismo de vigilância.

A janela para essa mudança é curta. A esperança está na recusa. No questionamento. Na capacidade de dizer não. A Geração Z já começou. A pergunta é: vamos juntos?


Bibliografia:

Han, Byung-Chul. (2010). A Sociedade do Cansaço.

Hari, Johann. (2021). Foco Roubado

Harris, Tristan. (2020). O Dilema das Redes. Netflix.

Huxley, Aldous. (1932). Admirável Mundo Novo.

Lembke, Anna. (2021). Geração Dopamina

Orwell, George. (1949). 1984

Zuboff, Shoshana. (2019). A Era do Capitalismo de Vigilância

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Formada em Desenvolvimento de Software e em formação em Ciências de Dados. Estudo como a tecnologia influencia percepções, decisões e relações humanas. Escrevo para organizar ideias e dar sentido ao que observo.

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