Já tenho dito por diversas vezes que cuidar de um idoso com demência é muito mais do que um trabalho, é um desafio emocional diário. É viver entre a ternura e a exaustão, entre o amor e o limite. Há dias em que o sorriso basta e outros em que tudo parece demasiado pesado.
Durante algum tempo, cuidei de uma utente que,além da demência, sofria de uma ansiedade profunda. Todos os dias, mal eu chegava ao trabalho, lá estava ela à minha espera, pronta para colocar o mesmo problema de sempre, com o mesmo tom aflito, o mesmo olhar perdido e aquela inquietação que parecia nunca ter fim. Era como se todos os dias ela acordasse no mesmo ponto e eu tivesse de começar tudo de novo.
Nos primeiros tempos, a minha resposta era sempre paciente, atenta e afetuosa. Eu sabia que, por trás das suas palavras repetidas havia medo, solidão e confusão. Mas, com o passar dos meses, o cansaço foi-se acumulando. Excesso de trabalho, responsabilidades em cascata, falta de pausas, falta de tempo e um desgaste emocional que eu não consegui perceber.
Até que chegou aquele dia. Um dia em que eu não estava bem. Um dia em que a exaustão falou mais alto do que o coração. Ela veio até mim com o mesmo problema, o mesmo tom e a mesma ansiedade. E eu… respondi da mesma forma, mas sem o brilho de antes e sem a ternura habitual. Disse o que já tinha dito mil vezes, cansada e sem forças para mais. Não a ofendi. Não levantei a voz. Mas também não lhe dei o melhor de mim. Quando cheguei a casa, o peso disso caiu sobre mim como uma maré. Chorei tanto nesse dia. Lembro-me que me senti a pior profissional do mundo. Tentei convencer-me de que talvez não fosse feita para aquilo, que talvez lidar com pessoas com demência não fosse para mim. Mas com o tempo percebi que não falhei por ter tido um momento de fraqueza, falhei por achar que não podia tê-lo.
Foi então que aprendi algo que mudou a forma de estar na minha profissão, aprendi que quem cuida também precisa de ser cuidado, e aprendi, também, que não poderia deixar que as emoções me dominassem e que aquela senhora merecia o melhor de mim, todos os dias.
Era a mim quem ela procurava para a tranquilizar e eu tinha o dever de estar à altura disso. Não porque fosse um “dever profissional”, mas porque era um compromisso humano. Ela, na sua confusão e vulnerabilidade, via em mim um porto seguro. E isso é o verdadeiro significado de cuidar.
O desgaste emocional dos cuidadores é real e profundo. As alterações de humor, a ansiedade, a agressividade ou a confusão de um idoso com demência são uma prova constante de paciência e empatia. É um desafio que, se não for acompanhado de capacitação emocional, pode transformar o ato de cuidar numa experiência de dor silenciosa.
Muitas vezes, o cuidador é visto apenas pelo que faz: levantar, alimentar, medicar, vigiar…mas raramente se olha para o que ele sente. E sente tudo. Medo de falhar, a culpa por não conseguir dar sempre o mesmo, o esgotamento físico e emocional, e a solidão de quem precisa de ser forte todos os dias.
Cuidar de alguém que vive num mundo fragmentado, onde a memória se dissolve e a realidade se confunde, é um exercício diário de amor e resiliência. Mas esse amor, se não for nutrido, também se cansa.
Quando se fala em capacitação de cuidadores, pensa-se logo em técnicas como a mobilização, a alimentação ou a administração de medicamentos, mas raramente se fala de capacitação emocional: aprender a reconhecer os próprios limites, identificar sinais de exaustão, praticar o autocuidado e pedir ajuda sem culpa.
A formação emocional não é um luxo, é uma necessidade. É ela que permite ao cuidador compreender que, quando o idoso repete a mesma pergunta pela centésima vez, não é teimosia. Que quando ele se irrita sem motivo não é falta de educação, é confusão mental. É a capacitação emocional que permite ao cuidador reconhecer que há dias em que não vai conseguir ser o seu melhor e que isso não o torna menos humano nem menos competente.
As instituições de cuidados, sejam lares, unidades de saúde ou cuidados domiciliários, falham muitas vezes neste ponto. Fala-se em humanização do cuidado, mas raramente se fala em humanização do cuidador.
Não há espaços de partilha, de escuta ou de acompanhamento psicológico regulares. E, no entanto, a saúde mental de quem cuida é o alicerce de todo o processo. Como pode alguém transmitir tranquilidade se vive em permanente ansiedade? Como pode alguém dar empatia se está emocionalmente vazio? Cuidar de quem cuida é garantir que o ciclo do cuidado seja saudável e sustentável. É criar programas de apoio emocional, grupos de partilha, momentos de descanso e de reconhecimento. É lembrar que o profissional de saúde, o cuidador formal ou informal, também é uma pessoa com corpo, mente e coração.
A culpa é uma sombra que acompanha quase todos os cuidadores. Culpa por se cansarem, por não conseguirem sempre sorrir ou, simplesmente, por desejarem um intervalo. Culpa por num dia mau não terem a mesma paciência.
Mas a verdade é que a perfeição não existe no cuidar. Admitir isto é libertador.
Aprendi que cuidar não é apenas dar o que temos, mas também saber parar quando já não conseguimos dar. É reconhecer que o nosso limite não nos torna menos capazes mas torna-nos mais conscientes, mais humanos e, paradoxalmente, melhores cuidadores.
Naquele dia em que chorei ao chegar a casa, percebi que o peso que sentia não era o da culpa, mas sim do silêncio. O silêncio de quem carrega tudo e sente que não pode desabar. Desde então, aprendi que o cuidar também se aprende emocionalmente.
Aprende-se a respirar fundo, a aceitar os dias maus, a reconhecer a exaustão e a procurar apoio. Aprende-se que não se é menos profissional por sentir. É esta humanidade que faz toda a diferença no cuidado à pessoa com demência. Porque, no fim, o que o idoso mais precisa não é de perfeição, mas de presença. E a presença verdadeira só existe quando o cuidador também se sente visto, ouvido e apoiado.
Cuidar de quem cuida não é um luxo. É o primeiro passo para um cuidar digno, humano e sustentável. E eu aprendi, naquela noite de choro, que só quando cuido de mim é que consigo cuidar realmente do outro. E é com orgulho que partilho isto aqui.



































































































