A liberdade de expressão… essa ilusão

Falar livremente é uma falácia que é refém da tração que resulta de uma lógica do mercado opinativo das redes sociais. A nova gramática da liberdade mede-se através de impulsos binários, e não por valores ou princípios. Fala-se mais para ser visto do que para ser compreendido. 

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Não será desmesurado considerar-se que hoje temos voz. Trata-se de um resultado proveniente do apogeu das redes sociais e da democratização do acesso às capacidades de mediação que lhes são inerentes. Quase se pode dizer que se assiste à transformação do ancestral privilégio de comunicar numa obrigação de nos pronunciarmos. Porque, aparentemente, cada assunto, cada ação, desde que sejam públicos, parece exigir uma reação, materializada através de um mero comentário, de um post, ou, quiçá através da criação de um meme, ou de um reel. De repente, na esfera digital somos todos, todos, todos (como disse Francisco) especialistas em tudo, mas na verdade sabemos pouco de nada. É, no fundo, um campo pantanoso de verborreia digital!

Há dias, um amigo, recordou-me de Byung Chul-Han, autor sul-coreano, radicado há muitos anos na Alemanha, que li e leio com grande regularidade. E recordei-me que, por exemplo, na “Sociedade do Cansaço” e na obra “No Enxame”, Han não nega a importância simbólica e prática dessa conquista, que representa uma ferramenta contra a censura e o autoritarismo. Contudo, no contexto digital, afirma que assistimos a uma mutação deste ideal: ou seja, é uma forma de controle que é imposta tanto por pressões externas, como internas. 

Na ecologia digital, somos os nossos próprios carcereiros, pois o panóptico, proposto por Michel Foucault, está, simultaneamente, nos ecrãs e no nosso interior num contexto em que, cada vez mais, somos escravos dos impulsos dos nossos próprios axiomas. Falar livremente é uma falácia que é refém da tração que resulta de uma lógica do mercado opinativo das redes sociais. A nova gramática da liberdade mede-se através de impulsos binários, e não por valores ou princípios. Fala-se mais para ser visto do que para ser compreendido. 

É o que Han chama a “Sociedade da Transparência”: um contexto em que tudo deve ser mostrado, comentado e partilhado. Um lugar onde se instala uma necessidade vertiginosa de comunicar incessantemente. E esta realidade está a destruir o espaço público. Esse lugar, já milenar, onde ocorre o debate de ideias, o contraditório que se está a desfazer perante o turbilhão interminável de opiniões dadas em simultâneo. Essa corrente que afinal representa uma nova forma de censura – embora mais discreta e mais enraizada. A liberdade de expressão deu lugar a ações sem escuta, vazias de pensamento crítico e sem o recolhimento necessários. Já não se trata de “ser”, trata-se apenas de “estar”.   

Martin Heidegger considerava que pensar é um ato demorado. Obter o “ser” representa um processo moroso, pois o pensamento e a sua materialização em palavra tem peso. Na sua cabana, localizada em Todtnauberg, na Floresta Negra, na Alemanha, o silêncio representava uma dimensão fundamental: um campo fértil onde o pensamento podia decorrer da reflexão sustentada e ocorrer enquanto um construto essencial para a sociedade. Hoje, Han propõe que esta ação (o silêncio) pode representar uma forma de resistência. Ou seja, recusar o ruído dos contextos digitais é cortar o fluxo da tração; é criar um espaço onde o pensamento verdadeiramente crítico pode emergir e circular. 

Expressar-se nestes contextos pode ser apenas uma modalidade de servidão, e não de manifestação de liberdade. Talvez, esteja na hora de perceber que o ato de se calar pode ser um ato de subversão. Porque, como Prometeu, nós ainda estamos acorrentados – mas não a uma pedra. Somos prisioneiros de dados e likes e, em vez de estarmos a ser devorados gradualmente por uma ave divina, estamos a ser esventrados por algoritmos e tendências digitais. Em suma, somos prisioneiros da nossa própria existência.  

Referências:

Foucault, M. (2019). Vigiar e punir: Nascimento da prisão. Lisboa: Edições 70.

Han, B.C. (2014). A sociedade do cansaço. Lisboa: Relógio D’Água.

Han, B.C. (2014). A sociedade da transparência. Lisboa: Relógio D’Água.

Han, B.C. (2016). No enxame: Perspectivas do digital. Lisboa: Relógio D’Água.

Heidegger, M. (2005). Ser e tempo. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

Heidegger, M. (2022). Caminhos de Floresta. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

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Professor Ensino Superior | Instituto Superior Miguel Torga Área dos Audiovisuais e Comunicação | Área de Ciências Empresariais

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