O Paradoxo da Carne

"Há quem faça a gestão deste paradoxo com elegância: continua a comer carne, mas pergunta-se “o quê, quando, com quem, porquê?”. Outros resolvem abandoná-la – o que também é legítimo. Eu acho que há beleza nessa contradição [...]."

Tempo de leitura: 4 minutos

Comemos carne como quem assina um contrato de amnésia. No prato, o bife já não é um animal: tornou-se objeto neutro, castanho-aconchegante, seguro. Se pensarmos na vaca enquanto mastigamos – a festa interrompe-se. Porque o jantar é sagrado, e pensar estraga o ritual.

Em psicologia, há pelo menos um nome para isto: dissonância cognitiva[1]. Eu prefiro “sobrevivência emocional”. O ser humano é especialista em comer e esquecer. É um talento evolutivo: conseguimos amar o cão e devorar o porco sem pestanejar, porque temos gavetas mentais para aquilo em que decidimos não pensar. Ou porque nos disseram: “sempre assim foi”.

A sociologia portuguesa não fica atrás. Num estudo recente, lemos que “o aumento do custo de vida em Portugal está a provocar alterações nos hábitos alimentares da população […] reduzir o consumo de carne por opção”[2]. Mas – paradoxo supremo – noutro artigo consta que, em Portugal, “o consumo anual per capita é de 118,0 kg, o que significa que cada português consome diariamente 323,3 g de carne”[3].

Então, afloram duas facetas: a da rotina – “isto sempre foi assim, somos carnívoros” – e a da consciência – “espera, não deveríamos estar a pôr isto em causa?”. A tradição junta-se ao prazer, e a consciência ao desconforto.

A saúde pública também bate à porta. A Direção‑Geral da Saúde revela que “o elevado consumo de carne vermelha, carnes processadas […] foram os fatores de risco alimentar para os quais se verificou um maior aumento do seu contributo para a perda de anos de vida saudável”[4]. Independentemente de a carne fazer bem ou mal – questão que deixo aos médicos e aos moralistas – importa-me sobretudo a consciência que se consome com ela.

A psicologia aponta para conceitos como distanciamento moral e dissociação simbólica[5]. No momento em que o garfo fura o bife, não é a carne que sangra – é a nossa consciência. Mas, temperado com sal grosso e um copo de vinho, até o remorso fica tenro.

Mas aqui vai a chave: o nosso DSM[6] pessoal (não o oficial) não inclui “gostar de carne” ou “dissociar o animal do prato”. O manual clínico não trata disso. Porque não é doença – é condição humana. É a indústria da normalização que nos ajuda a dormir.

Há quem faça a gestão deste paradoxo com elegância: continua a comer carne, mas pergunta-se “o quê, quando, com quem, porquê?”. Outros resolvem abandoná-la – o que também é legítimo. Eu acho que há beleza nessa contradição: queremos ser bons, mas queremos jantar. Queremos empatia, mas também queremos bifes.

No fundo, não é a carne que nos divide – é a capacidade de olhar para o prato e ver o animal que lá já não está. Uns veem proteína. Outros veem um passado com olhos húmidos e um focinho curioso. A maioria vê só a refeição de domingo.

Talvez um dia consigamos comer sem mentir. Até lá, continuamos assim: entre o garfo e a consciência, entre o apetite e a empatia, a mastigar o nosso paradoxo.


[1] American Psychiatric Association (2013). DSM-5 – Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais. 5.ª edição. Lisboa: Climepsi Editores.
[2] ZAP AEIOU (2025, 16 de outubro).“Menos carne, forno e jantaradas: hábitos alimentares dos portugueses estão a mudar.”. Disponível em: https://zap.aeiou.pt/menos-carne-forno-e-jantaradas-habitos-alimentares-dos-portugueses-estao-a-mudar-706519
[3] Voz do Campo (2025, maio). “O consumo de carne em Portugal: entre a estatística e a realidade.”. Disponível em: https://vozdocampo.pt/arquivo/42895
[4] INEM / Direção-Geral da Saúde (2024, 3 de junho). “Alimentação inadequada e excesso de peso entre os fatores que mais determinam a carga da doença dos portugueses.”. Disponível em: https://www.inem.pt/2024/06/03/alimentacao-inadequada-e-excesso-de-peso-entre-os-fatores-que-mais-determinam-a-carga-da-doenca-dos-portugueses
[5] Loughnan, S., Bastian, B., & Haslam, N. (2014). “The Psychology of Eating Animals.” Current Directions in Psychological Science, 23(2), 104–108. DOI: 10.1177/0963721414525781.
[6] Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (DSM, na sigla inglesa), criado pela Associação Americana de Psiquiatria (APA), obra de referência na área à qual os profissionais de saúde mental recorrem para diagnosticar transtornos psiquiátricos com base em critérios e sintomas. Foi publicado pela primeira vez em 1952 e, desde então, sete atualizações foram feitas.

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Psicólogo no CRPG-Delegação de Coimbra e de Hospitais Privados (Área Clínica / Neuropsicológica).

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