A distância entre o poder e o povo: a lição belga para a Europa

“Os cidadãos trabalham sempre mais, mas têm a impressão de serem governados por aqueles que trabalham cada vez menos para eles. Essa perceção corrói a confiança na democracia e destrói o tecido social por dentro.”

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Existe um padrão que se repete, silencioso e previsível, em quase todos os países que tive ocasião de conhecer. As fronteiras mudam, as bandeiras também, mas o sentimento permanece: os políticos vivem num universo paralelo, desconectado da realidade daqueles que os elegeram. As decisões tomadas em escritórios confortáveis raramente parecem relacionadas ao quotidiano do cidadão comum.

Ao longo das minhas viagens por diferentes continentes, constatei que a política tornou-se, em muitos lugares, um teatro de intenções onde a retórica substitui a escuta e a imagem conta mais do que o conteúdo. Os cidadãos trabalham sempre mais, mas têm a impressão de serem governados por aqueles que trabalham cada vez menos para eles. Essa perceção corrói a confiança na democracia e destrói o tecido social por dentro.

Na Bélgica, onde moro atualmente, essa desconexão é particularmente visível. O sistema político é um labirinto complexo, feito de alianças e compromissos que diluem o poder até à imobilidade. Votando à esquerda ou à direita, acabamos sempre num centro nebuloso, onde as diferenças ideológicas perdem a sua substância. Enquanto o cidadão espera soluções, os acordos partidários multiplicam os postos, os privilégios e as remunerações.

Não é raro vermos os responsáveis políticos acumularem funções e salários, enquanto o povo suporta altas de impostos e novos apelos à austeridade. Mais surpreendente ainda, mesmo sem um governo constituído durante meses — ou até anos —, os líderes continuam a receber os seus pagamentos como se nada tivesse acontecido. O absurdo torna-se institucionalizado.

Outro sintoma dessa crise de representatividade é o envelhecimento do poder. Governos compostos por líderes que não dialogam tornam-se prisioneiros da sua própria desconexão. A modernização política não é apenas uma questão de tecnologia ou de comunicação, mas de mentalidade: a política precisa de um rejuvenescimento ético, geracional e cultural.

Repensar o sistema não é um luxo intelectual, é uma urgência civilizacional. A democracia só cumpre a sua promessa quando se lembra da sua essência: os líderes existem para servir o povo — e não para se servirem do povo. A Bélgica é apenas um espelho, talvez mais polido, do que se passa noutros lugares. O reflexo é desconfortável, mas necessário. Porque reconhecer o padrão é o primeiro passo para transformá-lo.

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Stéphane Trindade é um viajante cultural belga e observador político. Atualmente vive na Bélgica, mas todos os meses percorre novos países, continentes e culturas, estudando de perto as diferentes formas de poder e as dinâmicas sociais que moldam as democracias contemporâneas.

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