Erro: Falha no sistema ou possibilidade extrema?

"Se todo erro é uma possibilidade inscrita no sistema, então não há erro num sentido absoluto, mas apenas variações de ocorrência: umas mais centrais, outras mais periféricas...

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Quando falamos de algo que aconteceu que “não deveria ter acontecido”, “está errado” ou “como pode ter acontecido?”, do que estamos a falar, ao certo? É isto que pretendo explorar aqui (ainda que sucintamente), propondo a tese de que um erro, na verdade, não é uma impossibilidade de algo acontecer num determinado sistema, mas uma das suas expressões possíveis.

O conceito maioritariamente aceite do que é um erro, parte do pressuposto e do juízo de algo que jamais deveria ter acontecido, à luz do nosso conhecimento e análise de padrões desse sistema. Nem sequer equacionamos a possibilidade de tal coisa acontecer. Perante esta ocorrência, perguntamos a nós mesmos, fruto de uma resposta emocional do nosso corpo, “como foi possível tal coisa? Só pode haver algo errado aqui”. Pense em qualquer coisa na sua vida, no seu dia a dia que considere tão absurdo, mas tão absurdo, que nem deveria ter acontecido. Por exemplo, um acidente de trânsito onde o seu animal de estimação morreu “do nada”. Contudo, será mesmo assim? Ou será que o erro não passa de uma possibilidade, ainda que muitíssimo pouco frequente, já contida no próprio sistema, que apenas se manifestou?

De um ponto de vista lógico, se algo aconteceu, é porque foi possível ter acontecido. Como poderia um determinado acontecimento ter ocorrido, se aparentemente tudo o que está envolvido nesta ocorrência a impossibilita? No mundo das probabilidades, percebemos que há um padrão de ocorrências: as mais comuns, as menos comuns e as altamente incomuns. As probabilidades não são mais do que um espectro de probabilidade de ocorrência de eventos.

Assim, um erro não será uma falha de sistema, mas sim a forma como denominamos tais ocorrências tão inesperadas, mas tão inesperadas, que nem sequer poderíamos sonhar que tal coisa fosse possível. Normalmente encaramo-lo como algo que não devia ter acontecido. Mas se admitirmos que o erro acontece porque pode acontecer, ele deixa de ser “ilegítimo” e passa a ser apenas uma realização menos provável, talvez até necessária, como modo de revelar os limites do sistema. Nesse sentido, o erro pode ser visto como clarificador, porque mostra as margens daquilo que o sistema tolera e produz.

Se todo erro é uma possibilidade inscrita no sistema, então não há erro num sentido absoluto, mas apenas variações de ocorrência: umas mais centrais, outras mais periféricas. O “erro” é um nome que damos ao acontecimento improvável que nos desarma, porque o sistema de crenças ou expectativas com que funcionamos não estava preparado para ele. Assim, talvez não exista erro num sentido absoluto. Há apenas acontecimentos mais ou menos raros, mais ou menos conformes ao que esperávamos. O erro, longe de ser falha, é uma manifestação da raridade e é justamente nessa raridade que se revela o contorno completo do sistema, porque sem as margens, não haveria centro. Sem o improvável, não conheceríamos o peso do provável.

O erro pode ser visto como uma ofensa à nossa presunção de que compreendemos o mundo na sua totalidade. Pode desafiar as nossas verdades mais absolutas e toda a nossa segurança interna e externa. Afinal, segundo esta minha tese sobre o erro, talvez possamos sentir que há muitas coisas que podem acontecer fora do nosso controlo e isso questiona o nosso sentimento de segurança. E o erro não desafia apenas sistemas técnicos, desafia o Ego Humano. Neste sentido, o erro torna-se pedagógico, mostra as margens do possível, expõe os limites do que imaginávamos fixo. O erro não é uma interrupção do sistema.

Ainda assim, acredito que tal cenário não necessita de ser catastrófico, mas, por outro lado, uma verdadeira fonte de espanto, perante coisas que acontecem, independentemente de juízo de valor emocional. Perante a quantidade de coisas “erradas” que acontecem, que tornam o sistema maravilhoso. Olhar para as possibilidades através da maravilha da possibilidade da sua existência.

Temos, por exemplo, na biologia, química, física e até na própria psique humana, inúmeros exemplos desse “erro” a manifestar-se. Na biologia as mutações genéticas são um exemplo. Todos os seres vivos que existiram e existirão são fruto de variadíssimos “erros de sistema”. Na física, muitas coisas acontecem de formas que ainda não foram possíveis de explicar, precisamente porque não temos todo o conhecimento necessário para compreender determinados fenómenos. Aquilo que entendemos como as verdades absolutas rapidamente se dissolvem perante o inexplicável.

No plano da psique humana, com especial relevo, podemos observar como a ideia de termos praticado ações moralmente erradas — a nível pessoal, social ou profissional — gera um desgaste emocional imenso. Não é apenas o acontecimento em si, mas a forma como o interpretamos: acreditar que cometemos um erro grave, cria em nós uma pressão e ansiedade enormes, minando a nossa saúde mental. Acredito, portanto, que será sensato questionar se há efetivamente verdades absolutas ou se há apenas aquilo que sabemos por enquanto.

Neste sentido, parece-me que olhar o mundo através de uma sensibilidade e aceitação de que tudo o que for possível acontecer, vai acontecer, em algum momento, prepara-nos para uma expansão cognitiva do cosmos e, consequentemente, uma maior preparação emocional face à existência. Não nego, evidentemente, a resposta emocional que o nosso corpo aprendeu, evolutivamente, a dar, perante essas manifestações extremas, no entanto, o exercício proposto na frase interior, parece-me interessante, como maturidade emocional.

O meu fascínio acaba por ser o desconhecimento daquilo que poderão ser as “barreiras” entre dois sistemas que funcionam sob leis diferentes. Não necessariamente que os dois sistemas não contenham algumas premissas iguais, mas precisamente porque a maioria das premissas são diferentes. Como se formam essas barreiras? O que estará entre o limite de um sistema e o limite do outro? Haverá, de facto, algum tipo de barreira? O que acontece a um sistema quando a sua raridade é sistematicamente suprimida? Será possível, sequer, haver trocas entre sistemas? Tantas questões.

Se o erro é uma possibilidade inerente aos sistemas (o nosso corpo, os sistemas sociais, o mundo, o universo), então a nossa necessidade de controlo e segurança é, em grande parte, uma ilusão. Acredito, portanto, que será sensato questionar se, efetivamente, haverá verdades absolutas ou, por outro lado, apenas aquilo que sabemos, enquanto nada mais sabemos.

Já agora, será que um cancro ou uma qualquer outra doença não será apenas um “erro de sistema”? Talvez aquilo que denominamos por doença, não esteja conceptualizado da forma mais correta.

Para terminar, parece-me que o erro é apenas mais uma criação do Homem, face ao medo perante o caos. No entanto, não haveria evolução e não estaríamos aqui hoje, se não tivessem acontecido muitos erros, muito caos.

Até já, caro leitor!

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A esticar a corda desde 1986, nascido em Coimbra. Nos últimos dez, através da Filosofia e Psicologia, tento entender os mecanismos de funcionamento entre os corpos e ambiente.

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