O Idoso com Demência: Quando a Sua Verdade Deixa de Contar

O cuidado ao idoso com demência é, acima de tudo, um exercício de humanidade. Não basta dar banho, alimentar e medicar. É preciso ver quem está ali, mesmo que ele já não se lembre de quem foi.

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Ultimamente, temos ouvido falar muito sobre autonomia, dignidade e respeito pela vontade do outro. No entanto, quando se trata do idoso diagnosticado com síndrome demencial, esses princípios parecem facilmente diluir-se. A sua voz torna-se ténue, a sua vontade é interpretada e substituída por aquilo que achamos ser o melhor. É como se, junto com o diagnóstico, viesse atrelada a perda do direito a ser ele mesmo.

A demência rouba memórias, mas não apaga a essência. Há um “eu” que permanece, que sente, reage, faz escolhas e se expressa, mesmo que de forma diferente ou incompreensível aos nossos olhos. É comum vermos essa individualidade ser desvalorizada em nome da praticidade ou da rotina. O idoso passa a viver sob o ritmo de quem cuida, encaixado num molde que não foi feito à sua medida.“Ele já não sabe o que é melhor”, dizemos. E nós sabemos? Se o idoso não consegue expressar abertamente aquilo que quer, quem sou eu para o fazer por ele? Quem me garante que, para aquela pessoa, o “melhor” é eu substituí-la na alimentação só para ela não sujar a roupa? Melhor ainda: qual é o problema de sujar a roupa? Não se pode trocar a seguir à refeição?

Isto não passa de uma desculpa para camuflar o verdadeiro problema que enfrentamos: a falta de recursos humanos e de profissionais devidamente capacitados para o cuidado a pessoas com esta patologia. É aqui que falhamos redondamente. É com estas e muitas outras “desculpas” que se apaga a vontade, o gosto e a escolha. Decide-se o que o idoso veste, o que come, quando dorme e até o que vê na televisão. Tudo é decidido por ele e nunca com ele. É uma espécie de infantilização disfarçada de cuidado e uma tentativa de simplificar aquilo que é complexo e profundamente humano.

A pessoa com quadro demencial continua a ter a sua “verdade”. Quando diz “quero ir para casa”, não se está a referir à morada física, mas a um sentimento: o de segurança, de pertença e de conforto. Ele quer alcançar aquilo de que ainda se lembra. Quando se mostra agitado, pode estar a reagir à frustração de não ser compreendido, de não conseguir expressar-se num mundo que, de repente, já não fala a sua língua.

E nós, impacientes, muitas vezes respondemos “a sua casa agora é esta”, sem perceber que o que ele sente é real mesmo que a sua lógica já não o seja. “Casa” nunca será apenas um lugar! Assumindo isto, não passamos de uns desvalorizadores de emoções disfarçados de cuidadores. Há também a tendência para o despersonalizar. Deixa de ser o senhor António que adorava pescar, o senhor que cantava fado e bebia o café sem açúcar. Passa a ser “o da cama três”, “o da demência” ou “o difícil”. O diagnóstico torna-se a sua identidade, e a história de vida desaparece entre horários, fichas e rotinas. É mais cómodo lidar com um caso clínico do que com uma pessoa que continua a desafiar-nos com o seu passado e com a sua verdade emocional.

Nas instituições, muitas vezes por falta de tempo ou de formação, esta despersonalização é constante e profundamente destrutiva. O idoso é moldado aos costumes da casa, aos horários impostos e ao cardápio repetido. Por que motivo a dona Maria tem de tomar banho de manhã no lar se, em casa, o fazia à noite? Porque é que as suas preferências, hábitos e manias são vistos como obstáculos à organização e não como um auxílio à criação de um plano individual de cuidados? “Está numa instituição, tem de se habituar às novas regras”. Claro que sim. E o resultado é um ambiente previsível e sem alma em que as pessoas são obrigadas a viver dias e dias repetidos, até que o sábado vira segunda e a noite vira dia. Depois ficamos muito surpreendidos “coitado do Sr. António, já não sabe em que dia da semana estamos”… Eu também não iria ser capaz de o saber nestas circunstâncias. É preciso coragem para cuidar, mantendo o respeito pelo que ainda resta da identidade do outro. Requer paciência para ouvir aquilo que já não é linear, sensibilidade para decifrar o que é dito entre silêncios e gestos. Mas, principalmente, requer humildade para reconhecer que a nossa forma de ver o mundo não é necessariamente a certa e, muito menos, a única. O cuidado ao idoso com demência é, acima de tudo, um exercício de humanidade. Não basta dar banho, alimentar e medicar. É preciso ver quem está ali, mesmo que ele já não se lembre de quem foi. O nosso dever é ajudá-lo a relembrar, replicando pequenos gestos da sua rotina e incentivando a prática daquilo que sempre o definiu. É necessário falar-lhe pelo nome que sempre usou, respeitar o seu ritmo, validar as suas emoções e reconhecer a sua história. Porque, por trás da confusão, do esquecimento e da repetição, há alguém que continua a sentir e a merecer ser tratado como tal.

Respeitar a vontade e a verdade de uma pessoa com demência é talvez um dos maiores desafios da nossa profissão, mas também um dos gestos mais puros de empatia. É escolher acreditar que, mesmo quando a razão se esvai, a dignidade permanece intacta e a emoção comanda.

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Enfermeira forense apaixonada pela investigação criminal e criminologia. Escrevo sobre justiça, direitos humanos e proteção dos mais vulneráveis. Acredito na ciência como ferramenta essencial para a verdade e justiça social.

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