Projeto de Lei Nº47

Em prol da liberdade individual de ocultar o rosto, poríamos em causa a liberdade coletiva de identificar os transeuntes, sob o prejuízo do sentimento de segurança dos demais. Não podemos dizer que não é natural uma pessoa sentir-se insegura ao não ter a capacidade de ler a expressão ou a linguagem corporal de alguém com quem se cruze na rua. 

Tempo de leitura: 5 minutos

Foi aprovado um projeto de lei (Nº 47/XVI/1.ª) que visa a proibição da ocultação do rosto em espaços públicos salvo determinadas exceções, e a esquerda gerou o caos! Questão: lançaram o caos porque a proposta partiu do Chega, ou porque estão realmente preocupados com as liberdades individuais das pessoas? 

Caso seja a segunda hipótese, isso é um bocado liberal, não acham? Piadolas à parte, vamos lá tentar racionalizar o assunto. Começo por mencionar que, conforme foi apresentado na introdução do projeto de lei, há inúmeros países europeus com leis semelhantes12, aprovadas há já vários anos. Aparentemente, não há movimentos contra essas leis, e tudo parece estar conforme. Será porque foram implementadas antes desta onda de reativismo e indignação potenciada pelas redes sociais? 

A ocultação do rosto impede a identificação do interlocutor, a leitura das suas expressões faciais, a comunicação normal e fluida entre seres humanos. Apaga a identidade da pessoa, apaga a sua linguagem corporal. Num país como Portugal, em que os valores comuns da sociedade pressupõem a comunicação em plenas capacidades, ocultar o rosto vai expor a pessoa que o faça ao preconceito e exclusão/isolamento social. Isto, parece-me, será muito mais negativo que qualquer benefício que a pessoa poderá ter por fazê-lo.

A não ser que a razão para a ocultação do rosto seja impedir a identificação com o propósito de cometer um crime. Aí, claramente que o benefício será infinitamente superior 😏 (reparem como foi importante introduzir uma expressão num texto, através de um emoji, para que a ironia fosse devidamente assinalada. Imaginem só comunicar com pessoas por escrito, e não poder usar emojis para evidenciar o tom. Percebem o ponto?) 

Permitam-me também enfatizar as exceções apresentadas: mediante justificação, pode ocultar se o rosto por motivos de saúde, profissionais, artísticos, de entretenimento, publicidade, em aviões, instalações diplomáticas e consulares, locais de culto, locais sagrados, por motivos de segurança, por causa de condições climáticas, ou sempre que tal decorra de disposição legal que o permita. Parece-me bastante razoável e não vejo motivos válidos que não estejam mencionados no documento. 

No campo das liberdades individuais, que poderá ser o ponto mais ambíguo para mim (considerando-me eu uma liberal nata), identifico aqui o argumento da liberdade individual vs. a liberdade coletiva como primeiro argumento forte a favor do projeto de lei. Em prol da liberdade individual de ocultar o rosto, poríamos em causa a liberdade coletiva de identificar os transeuntes, sob o prejuízo do sentimento de segurança dos demais. Não podemos dizer que não é natural uma pessoa sentir-se insegura ao não ter a capacidade de ler a expressão ou a linguagem corporal de alguém com quem se cruze na rua. 

O segundo argumento forte será o historial de opressão às mulheres nos países e nas culturas que fomentam o uso de burqa/niqab. Reparem que é a primeira vez que estou a mencionar a indumentária feminina cultural/religiosa de algumas fações do Islão. Permitir o uso desse tipo de vestuário seria conivente com a opressão sofrida pelas mulheres que tiveram a infelicidade de nascer/viver nesses locais, coisa com a qual eu não me sinto nada confortável. 

Tenho lido que quase não se veem mulheres de burqa/niqab em Portugal, e que por isso não faz sentido perder tempo a legislar sobre o assunto. Em primeiro lugar: o projeto de lei não se cinge à proibição da burqa/niqab; em segundo lugar: melhor ainda, que assim ninguém se vai sentir incomodado se a lei for promulgada.

Acrescento que acho genuinamente que esta medida nada tem a ver com o vestuário cultural/religioso islâmico. Não estão a proibir a ocultação do rosto por quererem oprimir os muçulmanos, e alegar isso roça a estupidez e é extremamente populista. 

Concluo com o facto de Portugal ser um país com uma pitada relevante de conservadorismo. A nossa matriz cristã/católica ainda é muito evidente na sociedade, e isso aplica-se também a quem se diz ateu ou não-religioso. A nossa sociedade anda a mostrar-se desconfortável com o facto de cada vez mais haver por cá costumes e opiniões muito diferentes e disruptivos dessa matriz e mentalidade mais conservadora. Vejamos o facto de terem sido eleitos 60 deputados do partido mais vocal nessa perspetiva. Queremos mesmo ignorar esse desconforto, sob o risco de, em três ou cinco anos (se não for antes), termos um governo liderado por conservadores, tantas vezes apelidados de “extrema direita”? 

Eu diria que mais vale dar um passo atrás para podermos continuar a dar passos em frente.

  1. https://www.government.nl/topics/ban-on-face-coverings-referred-to-in-the-media-as-the-%E2%80%98burka-ban%E2%80%99/question-and-answer/where-does-the-ban-on-face-coverings-apply ↩︎
  2. https://www.euronews.com/2018/05/31/denmark-bans-the-face-veil ↩︎

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Formada em Gestão do Lazer e Animação Turística, trabalho actualmente no sector bancário. Sou apaixonada por ciência, fotografia e viajar, e sou extremamente curiosa sobre as mais variadas áreas de conhecimento. Aproveitei os 3 anos que trabalhei como guia-intérprete a full time para “viajar” através dos testemunhos dos meus turistas, enquanto lhes dava a conhecer um pedacinho de Portugal.

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