Quando a liberdade se cobre com medo

Nenhuma mulher se torna mais livre porque o Estado a obriga a tirar o que escolheu usar. Obrigar é sempre o verbo da opressão, seja para cobrir, seja para descobrir. A igualdade não se decreta, constrói-se com educação, autonomia e respeito.

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O Parlamento português aprovou a proibição do uso da burca e de outras roupas que ocultem o rosto em espaços públicos. À primeira vista, a medida pode parecer razoável, apresentada em nome da segurança e da igualdade de género. Mas a verdade é que esta decisão levanta questões muito mais profundas sobre liberdade individual, tolerância e o papel do Estado numa sociedade democrática.

No mundo islâmico existem várias formas de vestuário feminino, com significados diferentes e contextos distintos. O hijab cobre apenas o cabelo e o pescoço, deixando o rosto visível. O chador e o khimar estendem-se um pouco mais, cobrindo parte do corpo. Já o niqab e a burca tapam também o rosto, deixando apenas os olhos à vista, ou, no caso da burca, até os olhos ficam por trás de uma pequena rede de tecido. É sobre estas duas peças que a proibição recai, embora o debate e a desinformação acabem por arrastar consigo todas as outras, criando um clima de suspeita em torno de quem usa qualquer tipo de véu.

Imaginemos agora o que seria o Parlamento proibir o uso de correntes com o crucifixo, argumentando que o símbolo cristão poderia incomodar quem não partilha da mesma fé. Ou banir as procissões religiosas por causarem constrangimentos ao trânsito. Seria, com toda a justiça, um escândalo nacional. A liberdade religiosa seria evocada, a Constituição seria defendida e os mesmos que hoje aplaudem esta proibição, seriam os primeiros a erguer a voz. Porque, no fundo, a liberdade só é plena quando vale para todos, mesmo para aqueles que não se parecem connosco.

A burca e o niqab são muitas vezes apresentados como símbolos de submissão feminina. E é verdade que, em certos países, o seu uso é imposto. Mas em Portugal, na esmagadora maioria dos casos, estas peças são usadas por convicção pessoal, por tradição ou fé. Nenhuma mulher se torna mais livre porque o Estado a obriga a tirar o que escolheu usar. Obrigar é sempre o verbo da opressão, seja para cobrir, seja para descobrir. A igualdade não se decreta, constrói-se com educação, autonomia e respeito.

Esta lei, mais do que uma tentativa de regular o espaço público, é o reflexo de uma estratégia política. O governo atual, liderado pela coligação PSD/CDS, escolheu o caminho mais fácil: usar as armas do Chega para tentar seduzir o mesmo eleitorado. Em vez de liderar com valores democráticos, optou por se deixar contaminar pelo populismo e pela retórica do medo. É a política do ruído, da simplificação e da desconfiança, onde se legisla não para resolver problemas, mas para agradar aos instintos mais primários do eleitor.

O PSD, que um dia se apresentou como um partido de centro, defensor da social-democracia e da liberdade, está hoje perigosamente próximo de perder a sua alma. Herdeiro de um ideal moderado e progressista, parece agora disposto a trocar princípios por conveniência. Um partido que nasceu com Sá Carneiro, que defendia um socialismo em liberdade e acreditava num partido de liberdade, de justiça social e de solidariedade humana, não pode pactuar com leis que atacam minorias e alimentam preconceitos. Sá Carneiro deve estar a dar voltas na cova ao ver o rumo de um partido que já não se guia por valores, mas por sondagens.

A coligação PSD/CDS pode achar que, ao aproximar-se do discurso do Chega, está a travar a extrema-direita. Na verdade, está apenas a torná-la mais forte. A história mostra que quem tenta copiar o extremismo acaba sempre por ser engolido por ele. A fronteira moral entre a direita democrática e o radicalismo está a esbater-se, e com ela esbate-se também a credibilidade de quem devia ser alternativa.

A proibição da burca não é apenas um erro jurídico, é um erro ético. É o retrato de um país que, em vez de celebrar a diferença, começa a temê-la. Uma democracia não se mede pela forma como trata a maioria, mas pela forma como protege as minorias. Quando o Estado decide quem pode ou não expressar a sua fé, perde o direito de se chamar livre.

Portugal foi um exemplo de tolerância num continente que se fecha cada vez mais sobre si próprio. É essa herança que agora se coloca em risco. Porque quando a política se rende ao populismo e o medo se transforma em lei, o problema já não é quem cobre o rosto. É quem tapa os olhos à liberdade.

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Sinto, a cada dia que passa, que me tornei num jovem que deixou os sonhos para se dedicar a causas. Não me conformo com injustiças, por essa razão, sou orgulhosamente de esquerda!

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