Marcelo Rebelo de Sousa decidiu promulgar a nova Lei de Estrangeiros. Disse que o diploma “corresponde minimamente ao essencial das dúvidas de inconstitucionalidade”. Minimante. É essa palavra — mínima, contida, quase envergonhada — que define o momento político e, talvez, o próprio país. Promulga-se o mínimo, espera-se o mínimo, vive-se o mínimo possível de esperança sem parecer ingénuo. Portugal é isto: um país que desconfia tanto de si mesmo que até quando faz o certo, fá-lo com desculpas.
A lei em causa tenta arrumar o caos deixado pela anterior: acaba com as manifestações de interesse[1], esse truque burocrático que servia para fingir que acolhíamos com braços abertos, quando, na verdade, estávamos só a empurrar papéis entre departamentos. Agora, quem quiser vir trabalhar precisa de visto prévio, de preferência, para funções altamente qualificadas. Quer isto dizer: pode vir, mas só se for para pagar impostos e não nos incomodar muito. O resto — os sonhos, as famílias, os afetos — fica na fronteira.
O Tribunal Constitucional já tinha avisado: cuidado com os direitos fundamentais, cuidado com o reagrupamento familiar, cuidado com as leis que deixam tudo para portarias e decretos. O Governo mexeu, aparou, afinou. Marcelo olhou e terá dito: pronto, vá, chega. Mas não parece convencido. Ninguém parece. O Presidente vive naquele ponto de equilíbrio em que um constitucionalista prudente se cruza com um católico com remorsos: cumpre o dever, mas não sem hesitar. E talvez seja precisamente isso que o humaniza.
Enquanto o país discute artigos e alíneas, há um facto que raramente entra nas conversas de café: Portugal precisa de imigrantes. Precisa mesmo. O Instituto Nacional de Estatística diz que, em 2023, entraram quase 190 mil pessoas e saíram pouco mais de 33 mil. Saldo positivo, crescimento populacional, economia a respirar à custa de quem vem de fora. Já somos mais de 1,5 milhões de estrangeiros residentes — cerca de 15% da população. E, do outro lado do espelho, há 1,8 milhões de portugueses espalhados pelo mundo, a fazer o mesmo percurso em sentido inverso. É o eterno fado da nossa identidade: somos emigrantes que desconfiam dos imigrantes.
A nova lei, dizem, vem pôr ordem. Mas há ordens que soam a arrumação de gaveta, não a justiça. Ao fechar portas por medo do abuso, arriscamos perder a abertura que nos fazia humanos. E o medo é péssimo legislador. Gera uma espécie de xenofobia educada — aquela que fala baixo e começa sempre por “eu não tenho nada contra, mas…”. É o “mas” que mata. É o “mas” que legitima as fronteiras invisíveis, os olhares de lado, as palavras que nunca se dizem alto.
O problema, claro, não está só na letra da lei. Está no espírito do tempo. Portugal tornou-se um país mais velho, mais cínico, mais exausto. Há uma fadiga social que se disfarça de bom senso. Fala-se em controlo migratório, quando, na verdade, se fala em medo: medo de perder o pouco que temos, medo de não reconhecer o país daqui a dez anos. Marcelo, que percebe as emoções coletivas como poucos, tenta ser o tradutor desse mal-estar em linguagem jurídica. “Minimamente”, suficiente, diz ele, e o país entende: “é o melhor que conseguimos”.
Mas um país não vive de mínimos. Precisa de grandeza. E a grandeza, neste caso, é lembrar que a Constituição é mais do que um texto; é uma promessa. Quando se fala em igualdade, em reagrupamento familiar, em tutela jurisdicional, fala-se em rostos; não em conceitos. O imigrante que espera meses pela decisão da Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA) não é uma estatística; é o novo vizinho, o novo padeiro, a nova enfermeira do hospital. É a pessoa que, discretamente, mantém o país a funcionar enquanto nós discutimos percentagens.
As leis passam, as maiorias mudam, os discursos inflamam-se. Mas o que fica — e o que realmente conta — é a forma como tratamos quem chega, sem CHEGANISSES. Portugal sempre foi pequeno demais para se dar ao luxo de ser cruel. E Marcelo, no seu jeito, parece saber isso melhor do que ninguém. Ao promulgar esta lei “minimamente” suficiente, talvez esteja a dizer-nos o contrário do que parece: que o essencial ainda está por cumprir.
[1] Processo destinado a cidadãos estrangeiros que tivessem entrado em território português legalmente, estivessem inscritos e com situação regularizada perante a Segurança Social e com uma relação laboral comprovada. A manifestação de interesse visava a obtenção de uma autorização de residência. O processo, contudo, podia ser demorado.