O Dilema da Escolha na Era do Ruído

"É normal que alguém não consiga estar em todo o lado ao mesmo tempo; é até o mais razoável de se esperar de um ser humano. Mas eis que acontece algo caricato… Principalmente quando observamos o debate entre pessoas que deveriam ter estes conceitos mais presentes [...]"

Tempo de leitura: 7 minutos

Nos dias de hoje, é praticamente impossível escapar à avalanche de notícias que recebemos de todo o mundo, que nos inundam os sentidos e nos afogam em preocupações.

A verdade é que a nossa perceção sobre a realidade que nos chega nem sempre corresponde à sua objetividade – se é que podemos afirmar que a realidade é objetiva e não a soma de factos e perceções sobre estes. A nossa perceção pode ser enviesada e condicionada pela exposição a situações semelhantes, proximidade, valores e outros fatores que nem sempre estão presentes no nosso dia a dia de forma consciente.

Ademais, é difícil sermos empáticos se estamos ligados constantemente a uma rede que nos informa sobre tudo, a todo o momento. Especialmente se esta rede acaba por fomentar os eventos mais negativos, porque são estes que provocam uma reação em cadeia de partilhas, likes ou de sintonização de canal. É difícil manter uma leitura dos factos próxima da sua verdadeira frequência, sem nos deixarmos levar pelo que faz de nós humanos – as nossas emoções e o saber colocar-nos um pouco nos sapatos do outro.

Assim, cada pessoa vê-se obrigada a escolher uma forma de lidar com o excesso de ruído. Se, para muitas, a solução está em escolher alguma forma de participar em movimentos, coletivos, ou mesmo no estudo, alguns escolhem não agir. Isto não é um texto que vá criticar essas posturas em específico. Até porque acredito que haja inúmeras formas de participar, cada uma adequada a cada realidade, e nem sempre vamos ter essa prioridade nas nossas vidas. A verdade é que, para um equilíbrio saudável entre a vida pessoal e a vida coletiva, temos de definir prioridades e fazer escolhas que favoreçam a nossa saúde e uma participação saudável e duradoura.

É normal que alguém não consiga estar em todo o lado ao mesmo tempo; é até o mais razoável de se esperar de um ser humano. Mas eis que acontece algo caricato… Principalmente quando observamos o debate entre pessoas que deveriam ter estes conceitos mais presentes quer pela sua vida profissional, quer pela sua própria experiência de participação no movimento político e cívico. É normal que, ao debater certos assuntos, surja um alerta para ações hipócritas do outro seja de forma construtiva, seja em debate político, de forma a arrecadar mais eleitorado e a desmascarar o oponente. Ora, uma coisa é essa postura; outra muito diferente é usar outras situações como elemento distrator da nossa própria conduta ou para desvalorizar a ação do outro.

Temos vindo a assistir a momentos de Whataboutism (“Entãosismo”, em português) há muito tempo. Esta prática tem inundado o discurso público, pelo menos, desde os anos 70 (altura em que surgiu o termo). Esta “jogada” está quase sempre associada a tentativas defensivas, à distração, ou à intenção de desvalorizar o outro. À primeira vista, podemos pensar que esta tática tem o seu sentido: se a pessoa está a focar o seu tempo num determinado assunto, porque não poderá o interlocutor dar prioridade a tantos outros que serão também importantes? Sendo eu uma pessoa que frequentemente critica o simplismo excessivo, digo que a resposta é simples: porque não podemos estar em todo o lado ao mesmo tempo, mas podemos começar por algum.

No ano de 2020, o movimento Black Lives Matter sugeriu uma metáfora da qual confesso ser fã. Para explicar que este movimento não era uma ameaça a outras pessoas, fizeram-nos imaginar uma casa em chamas ao lado de várias casas seguras. O nosso foco e energia vai imediatamente direcionar a nossa ação para tentar salvar aquela casa. Se não pela motivação de salvar quem lá está dentro, pela motivação de que não chegue à “nossa”.

Portugal não é uma exceção à regra. Nós não fugimos de seguir as marés a que temos acesso na internet e, também, não fugimos deste pensamento vicioso. Depressa nos escapa uma frase como “Então mas e…”. Algumas destas preocupações são válidas e construtivas para um mundo melhor, mas também muitas são um elemento que desvia a atenção para algo que é comumente aceite como importante.

O exemplo recente mais evidente disto (mas, ao longo dos anos são muitos, sintam-se livres para escolherem outros) é o caso dos quatro portugueses que embarcaram rumo a Gaza na flotilha humanitária. Não tardaram as críticas à sua partida com perguntas sobre imensos outros problemas (também importantes) que precisavam de ação, mas raramente a mesma boca que profere estas perguntas se ergue para fazer parte da sua solução. A verdade é que essas mesmas pessoas críticas se fazem ouvir sobre como as pessoas se deixam levar pelo comodismo e que apenas fazem parte da luta intelectual. Pois bem, a ação está a ser tomada… No entanto, não é suficiente… e na verdade nunca o será.

Crescem a desinformação e as mentiras sobre festas e ativismo performativo precisamente da ala dos que desvalorizam a causa desde o início. Temos, constantemente, de fazer um esforço extra no combate a estas falácias criadas para perder tempo. Criadas porque não temos nada de útil com que contribuir. Foi a isto a que o debate político, que deveria servir os interesses e necessidades das comunidades, chegou. A uma paródia em que ganha quem levanta mais a voz e diz as frases mais catitas. Onde as pessoas se interpelam e não se ouvem. Onde as maiores vozes e intervenientes políticos já não são um exemplo a seguir de coerência e seriedade, mas alguém que dá os melhores títulos nos jornais ou vídeos de Youtube para gerar cliques.

Esqueceram-se é que, no meio disto, o teor da conversa é a vida das pessoas. Não um jogo de números de votos, assentos, financiamentos ou salário.

A mecânica da escada política a que temos assistido ao longo dos anos levou a que a verdadeira engrenagem democrática se tenha enferrujado. Está presa em ambições pessoais e egos, que não deixam fluir a evolução da vida e das comunidades. É importante recordar que um assento na Assembleia não é um ponto extra no currículo ou um emblema vistoso, mas uma representação do outro que não pode lá estar nem fazer com que a sua voz seja ouvida.

Está na hora de ser mais sério e consciente. Deixar de lado as distrações e focar o debate em propostas e soluções. Apontar os problemas e logo tomar uma ação. O mundo precisa de uma participação ativa de toda a sua população. Precisa que o debate não se limite a um grupo restrito, que englobe todos, e que os seus representantes façam um esforço ativo de ouvir. Fugir das questões importantes como uma criança que nos chama à atenção para um ponto atrás de nós para nos distrair é o truque mais antigo do livro e já não devia ser moda entre adultos. Resta-me perguntar se estamos assim tão desprovidos de ideias e pensamento crítico que temos de recorrer a jogos infantis para sobreviver.

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Mestre em Psicologia pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto. Apaixonada por Políticas Públicas e práticas inclusivas e de proximidade. Nos tempos livres dedica a sua atenção à música e escrita.

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