O Corpo que Fala: Sinais Silenciosos de Violência que Não Podemos Ignorar

"Quantas vezes ouvimos dizer “é da idade” quando alguém se isola, perde a vontade de falar ou aparece com marcas estranhas? Normalizamos aquilo que devia ser um alarme. Chamamos “coisas da velhice” aos sinais claros de maus-tratos ou negligência...

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Somos uma sociedade de distraídos. Deixamos que o telemóvel, o trabalho e as nossas pequenas urgências nos sirvam de desculpa para não ver o que está à nossa frente. Fingimos que não vemos, porque ver dá trabalho. E, pior ainda, ver obriga-nos a agir. Quantas vezes aceitamos explicações absurdas só porque é mais confortável acreditar? “Foi só uma queda.” “Caiu da cama.” “O cão puxou a trela com força.” Quantas vezes repetimos estas desculpas como se fossem verdades absolutas porque é mais fácil do que fazer perguntas? O corpo fala. Grita! Mesmo quando a vítima não consegue. Hematomas de diferentes colorações em locais improváveis, fraturas mal explicadas, feridas que parecem não ter tempo de cicatrizar. Mas também fala em silêncios: o olhar vazio, o gesto hesitante, a ansiedade constante, o medo exagerado de um toque ou de um simples ruído. O corpo é uma testemunha que nunca mente. O problema é que a maioria de nós prefere não escutar. E quando escolhemos ignorar, estamos a compactuar com o silêncio que protege os agressores. 

Vejamos o caso dos idosos. Quantas vezes ouvimos dizer “é da idade” quando alguém se isola, perde a vontade de falar ou aparece com marcas estranhas? Normalizamos aquilo que devia ser um alarme. Chamamos “coisas da velhice” aos sinais claros de maus-tratos ou negligência. Ou pior. Culpamos a demência!

E as nossas crianças? São mestres em inventar desculpas porque acreditam que a culpa é delas. Aparecem com marcas que não batem certo com a história que contam, evitam o olhar, ficam retraídas. E nós preferimos pensar que é só timidez, que “cada criança tem o seu feitio”. Fechamos os olhos ao facto de que muitas delas vivem em casas onde brincar é um luxo e sobreviver é a única prioridade. Mas protegê-las devia ser a prioridade de todos nós. A afirmação “Não é minha, os pais que resolvam” não poderia estar mais errada. As crianças não são dos pais, são do mundo. E cabe aos adultos tornar esse mundo seguro e saudável para elas. 

E quantas pessoas chegam todos os dias ao trabalho mais apagadas, com roupas largas a esconder marcas, com desculpas mal ensaiadas sobre acidentes banais? Quantas vivem presas a relações onde a violência é tão comum que se tornou rotina? E quantas vezes ouvimos alguém dizer “entre marido e mulher não se mete a colher?”. Violência Doméstica é crime público. Não só podemos como devemos meter, sim, a colher! Cada vez que fechamos os olhos, estamos a dar a mão ao agressor. Cada vez que fingimos acreditar numa desculpa esfarrapada, prolongamos o sofrimento da vítima. Cada vez que dizemos “não é nada comigo”, estamos a deixar claro de que lado estamos. Neutralidade, neste caso, não existe. Ou estás do lado da vítima, ou estás do lado de quem a agride.

É fácil culpar o Estado, a polícia ou os tribunais. É fácil dizer que “as autoridades deviam fazer alguma coisa”. Mas antes do Estado, estamos nós. O vizinho que ouve barulhos e finge que é a televisão. O professor que vê a criança retraída e decide que é apenas tímida. O enfermeiro que recebe sempre a mesma história de “queda em casa” e escreve no processo sem levantar perguntas. Somos nós, todos os dias, a fingir que não ouvimos, que não vemos, que não sabemos.

A violência não acontece longe. Está no lar onde vivem os nossos pais, na escola dos nossos filhos, no local de trabalho onde passamos oito horas por dia. Está no prédio ao lado, na rua por onde passamos todos os dias. O problema não é invisível. O pior cego é aquele que não quer ver. E, sim, ver implica coragem. 

Perguntar incomoda. Denunciar dá trabalho. Escutar pode significar ter de agir. Mas é exatamente isso que distingue quem escolhe ser humano de quem escolhe ser cúmplice.

O corpo fala. Todos os dias. A pergunta é: vamos continuar a tapar os ouvidos ou vamos finalmente ouvir o que ele tem para dizer? Porque, no fim, não há meio-termo. Quem vê e finge não ver não é apenas indiferente. É um agressor passivo. O silêncio alimenta a violência, mas a ação corta-lhe o oxigénio. E a verdade é que não precisamos de ser heróis para fazer a diferença. Precisamos apenas de saber ouvir. 


Referências Bibliográficas

Gomes, A. M. (2024). O local do crime – Metodologia de investigação criminal (1.ª ed.). Rei dos Livros.
Gomes, A. M. (2020). Abordagem médica ao local do crime. Rei dos Livros.

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Enfermeira forense apaixonada pela investigação criminal e criminologia. Escrevo sobre justiça, direitos humanos e proteção dos mais vulneráveis. Acredito na ciência como ferramenta essencial para a verdade e justiça social.

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