Continuarmos a trabalhar para a dependência das pessoas: o impacto para a economia social

“Esta substituição de uma capacidade que a pessoa ainda mantém, apenas porque executa o autocuidado mais lentamente ou menos eficazmente, é um erro crasso na nossa sociedade.”

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Quanto custa manter a dependência das pessoas? Quantos idosos em instituições são considerados totalmente dependentes — e será que essa avaliação está a ser feita de forma correta? Existem escalas que medem o grau de dependência nos autocuidados e atividades diárias, no entanto, a questão é: será que são corretamente avaliadas? Será que, com incentivo, a pessoa não seria capaz de realizar parte dos seus autocuidados?

Vamos a casos práticos: o Sr. José vive numa instituição e tem uma doença neurodegenerativa diagnosticada há menos de um ano. Ainda é capaz de realizar a sua própria higiene e lavar a sua própria cara. No entanto, para realizar este autocuidado, devido às suas limitações da mobilidade, demora tempo. Tempo! Tempo que é escasso nas instituições. Assim sendo, e como há pouco tempo e todos os residentes têm de estar no espaço de refeição às 8h, o Sr. José é acordado às 7h e friamente é retirado da cama para realizar a sua higiene. Como o Sr. José, se fosse incentivada a sua autonomia e independência para se higienizar, demoraria imenso tempo, a senhora auxiliar decide ser ela a executar o cuidado de higiene ao Sr. José, pedindo-lhe que fique quieto para que ela possa higienizá-lo o mais rápido possível. Quando o Sr. José realiza este autocuidado sozinho, até nem o realiza eficazmente, por isso, tem de ser substituído nesta tarefa.

É este cenário que vemos diariamente acontecer em instituições, centros de apoio a idosos e serviços de apoio ao domicílio, entre outros, que prestam cuidados aos idosos, mas pecam pela promoção da independência destes. A síndrome de desuso é real. Inicia-se com uma substituição total por parte do cuidador e termina com a perda da função por parte da pessoa. Esta (a pessoa) perde a capacidade de, perde autonomia para, aumenta a rigidez articular, perde a mobilidade, perde a capacidade cognitiva (pois não é recrutada nenhuma função cerebral) e torna-se dependente para qualquer autocuidado.

Esta substituição de uma capacidade que a pessoa ainda mantém, apenas porque executa o autocuidado mais lentamente ou menos eficazmente, é um erro crasso na nossa sociedade. O pensamento de que “sou cuidador(a), sou profissional de saúde, por isso, devo fazer tudo à pessoa, sem lhe solicitar o envolvimento ou a participação”, é um erro enorme! Assim, caminhamos para a dependência das pessoas.

A nível económico, isso tem impacto. Há cada vez mais pessoas dependentes no nosso país. Isso tem custos, exige mais cuidados, exige mais dinheiro.

Tem também impacto para a própria saúde. A Senhora Emília, que usa fralda, pois necessita de ajuda para se deslocar ao WC — e isso demora tempo —, é incentivada a urinar na fralda e a fazer uso dela, pois é para isso que ela serve. Ao urinar na fralda há progressivamente perda do controlo do esfíncter, ou seja, aquela pessoa que anteriormente seria independente no autocuidado “usar o WC” agora é dependente. Não lhe é permitido deslocar-se ao WC. Deve fazer na fralda. Com o tempo, a Dona Emília vai tornar-se dependente e vai necessitar de mudas de fralda constantes, sem falar do considerável aumento do risco de infeções urinárias pelo uso da fralda e as idas às urgências, além dos antibióticos que vai ter de tomar em caso de infeção urinária. Isto tem custos. Promover a dependência da Dona Emília tem custos para a saúde, para a economia, para o nosso país, para todos nós.

Como é que ninguém fala disto? Trabalharmos diariamente para promover a dependência das pessoas, dentro de alguns anos, levará à rutura de um sistema frágil e ao colapso de uma economia que não identifica este problema como uma das principais fontes de rompimento do sistema.

Em suma, promovermos a dependência em detrimento da promoção da independência terá consequências graves no nosso sistema de saúde, social e económico. É imperativo criar condições, mudar de paradigmas e mudar mentalidades para que os cuidados de saúde sejam prestados sempre com vista à promoção da autonomia da pessoa.

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Enfermeira licenciada pela Escola Superior de Enfermagem de Coimbra. Formada em envelhecimento, funcionalidade e gestão de qualidade. Atualmente a frequentar o Mestrado em Enfermagem de Reabilitação. Apaixonada pela prestação de cuidados ao domicílio, dedica-se a promover a qualidade de vida e o envelhecimento saudável.

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