A notícia reverberou inesperadamente pelos corredores da Academia e pelos laboratórios onde o futuro é silenciosamente moldado, surpreendendo tanto intelectuais quanto pseudointelectuais. Por um lado, assustou. Por outro, feriu. E, por um terceiro lado, mais frio, visionário e quiçá cínico, estimulou a imaginação sobre as potencialidades da reconstrução a partir do ponto de impacto. A Fundação para a Ciência e Tecnologia, a FCT, morreu. Caiu sem aviso! O governo assinou o decreto e, com a frieza de uma decisão administrativa, um pilar da ciência portuguesa foi formalmente extinto.1 As reações previsíveis oscilam entre a vigília e a fúria. Falam em deserto cultural, em retrocesso, no fim de um ciclo. Talvez tenham razão. Ou talvez estejam a olhar para o dedo que aponta a lua. As opiniões oscilam desde a mais previsível, que a defende mas não a financiou suficientemente, à da eficiência burocrática e administrativa.
O nosso instinto primário é defender o corpo que conhecemos, a realidade que nos é familiar, e, por conseguinte, tendemos a manter o status quo e a ter medo da mudança. A FCT, com todos os seus defeitos – a burocracia lenta, os painéis por vezes opacos, a intermitência crónica dos concursos – era o nosso velho conhecido que, apesar de sabermos da sua ineficiência, queríamos manter por perto. Representava a entidade a quem se suplicava por bolsas e a quem se amaldiçoava pelos atrasos. Contudo, era o centro de um universo muito próprio – talvez demasiado próprio. A sua extinção não é um ato trivial. É uma amputação. A questão que importa, no entanto, não é lamentar o membro perdido, mas questionar se o corpo que resta pode, porventura, tornar-se mais ágil, mais forte, mais inteligente.
A verdade inconveniente, que poucos ousam proferir em voz alta no meio do coro de carpideiras, é que o Estado Português padece de uma patologia de fragmentação. Vivemos num arquipélago de agências, institutos e fundações que raramente comunicam entre si. São feudos. Sim, feudos! Monólitos que defendem orçamentos e quintas, umbigos e egos, erguendo muros em vez de pontes. A Ciência – fundamental – num canto, a Inovação Empresarial noutro, a Qualificação Profissional num terceiro e a Modernização Administrativa a navegar em águas próprias. Cada um com o seu plano, agenda, formulários, diretores, dirigentes intermédios. E o nosso dinheiro ali espalhado. O país, esse, espera que desta cacofonia nasça uma sinfonia bela e financiada, nem que seja apenas para ficar gravada num disco que ninguém ouve.
Paradoxalmente, a extinção da FCT pode ser o berço de uma nova vida. A fusão compulsória de entidades, por si só, não é a solução. Se resultar apenas num gigante burocrático, com mais labirintos e menos sentido, o fracasso é garantido. Mas e se a perspetiva for diferente? E se a meta for impulsionar uma simbiose que a inércia institucional sempre travou? Pondere-se, por instantes, uma nova estrutura que não se limite a financiar o artigo académico, mas sim a totalidade do percurso do saber. Uma plataforma onde o cientista que investiga materiais de ponta partilhe o espaço – não em eventos pontuais, mas na própria arquitetura – com um técnico da AICEP (Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal) ou um especialista do IAPMEI (Agência para a Competitividade e Inovação) versado na génese de empresas inovadoras. Quão vital é dispormos de núcleos de Investigação e Desenvolvimento que produzam riqueza e não vivam na perpétua dependência do fomento seguinte, da iniciativa subsequente, do subsídio vindouro, da resolução próxima, do próximo governo.
A transversalidade, tão debatida, não advém de protocolos de cooperação assinados para a fotografia. Emerge da convivência intrínseca, do diálogo interno, da partilha informal de ideias no seio da instituição. A grande oportunidade não está em fundir a FCT com uma congénere, mas na demolição das barreiras que a isolam de esferas que, intrinsecamente, lhe cumpre servir e alimentar. Porque não uma superestrutura que junte a investigação fundamental – a essência da FCT – com a inovação aplicada, a qualificação de ativos e a transformação digital do Estado? Um espaço onde um projeto sobre inteligência artificial para a saúde pública é, desde o primeiro dia, concebido em colaboração estreita entre cientistas, médicos, gestores hospitalares e técnicos da modernização administrativa.
O caminho, claro, está repleto de perigos, sendo o mais premente o da diluição. Existe o perigo de que, na procura incessante pela transversalidade, a nova entidade sacrifique a capacidade de fomentar a ciência basilar, a investigação de cariz puramente especulativo, aquela desprovida de métricas de mercado imediatas, mas que, invariavelmente, catalisa as revoluções vindouras. A defesa desta “curiosidade inútil” – e, na verdade, a mais útil de todas as ferramentas humanas – terá de ser uma linha vermelha inegociável na arquitetura do novo modelo.
O pranto pela FCT é compreensível, se bem que muito exacerbado, gerando um clamor que tolda a perceção do que efetivamente sucedeu. Mas talvez seja mais produtivo começar a desenhar o organismo que lhe sucede. Uma entidade ciente de que um avanço disruptivo em biotecnologia se torna estéril caso pereça confinado à estante de um laboratório ou biblioteca. Que a transformação digital do país precisa mais do que meros consultores, precisa de cientistas sociais, de especialistas em computação, de eticistas. E que todos estes precisam de um lugar para conspirar juntos.Se Nietzsche fosse nosso contemporâneo, talvez bradasse algo como: A FCT está morta. Ponto final.
Mas agora a pergunta de um milhão de euros: o que é que vamos ter coragem de construir sobre as suas cinzas? Um mausoléu burocrático maior e mais pesado, ou uma plataforma ágil e permeável, onde o saber finalmente transpira da torre de marfim académica para a quotidiano, para a fábrica, para as empresas, para a sociedade, para os hospitais, para o Estado? A resposta a esta pergunta determinará se o seu fim foi uma execução ou uma resignação piedosa, ou se ascenderá qual fénix a guiar o futuro.
Referências bibliográficas
- Moreira, C. F. (2016). Governo extingue FCT e mais dez organismos na área da educação. PÚBLICO; Público. Disponível em: https://www.publico.pt/2025/07/31/sociedade/noticia/governo-extingue-fct-dez-organismos-area-educacao-2142463 ↩︎