Como a melhor qualidade de vida pode (d)estruturar a coesão social?

"Contudo, surgiu outra necessidade: desta vez, não em resposta às dificuldades pessoais, mas em resposta à convivência em grupos: como manter o grupo unido? Ou, pelo termo usado atualmente, como manter a coesão social?...

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O bicho humano é, evolutivamente, social. É consensual, através de investigações científicas nas áreas sociais, como a psicologia social e a antropologia, que o Humano, ao longo da sua história, juntou-se em comunidades para fazer face às adversidades do “mundo antigo”. Em algum momento (entenda-se uma faixa de tempo), o Humano percebeu que, se combatesse as suas dificuldades, em grupo, a sobrevivência individual seria bem mais fácil. Talvez seja essa a origem fenomenológica da expressão “a união faz a força”.

Seria muito difícil, para um antepassado humano, resolver os seus problemas: garantir a segurança nas suas várias formas de manifestação, se apenas tivesse a si mesmo para ir caçar, subir a uma árvore para recolher frutos, construir ferramentas de caça e criar estratégias para se proteger do clima.

Não que fosse impossível fazê-lo, mas, do ponto de vista da autopreservação e reprodução, seria muito complicado fazer tudo isto sozinho. O mais certo era morrer “cedo demais”.

Neste sentido, quando o bicho Humano começou a cooperar na obtenção de alimento nas árvores, na caça, na construção de abrigos, ferramentas e por aí, tudo começou a ser mais fácil. Menos cansaço, mais disposição física para “enfrentar novas batalhas”, capacidade de adquirir mais alimento, são alguns exemplos de benefícios que trouxe a cooperação.

Contudo, surgiu outra necessidade: desta vez, não em resposta às dificuldades pessoais, mas em resposta à convivência em grupos: como manter o grupo unido? Ou, pelo termo usado atualmente, como manter a coesão social?

Para o bicho Humano cooperar, além da motivação da obtenção de mais e melhores recursos, foi necessário desenvolver algo que permitisse criar um sentido de união, que funcionasse como uma espécie de cola social. Esta cola tinha de ser tão boa, tão boa, que o bicho Humano dessa época acreditasse piamente nela. Se o bicho Humano não acredita na cola que permite a coesão social, como essa cola poderia funcionar? Qualquer cola só funciona quando ambos os “objetos” têm propriedades que permitam juntar-se. Assim nasceram as histórias, as narrativas sociais, a moral, as virtudes, os simbolismos e as demais formas que permitiram servir de cola.

Criando narrativas em que todos (ou quase) se pudessem identificar (e projetar) e que explicassem o inexplicável: o grupo criou identidade social. No caso, pensemos num grupo apenas que criou as suas histórias, linguagem e símbolos, que são reconhecidos e aceites por quase todos. Mas também criou regras para uma convivência (o mais saudável possível) entre os membros do grupo. A essas regras demos o nome de moral. As histórias estão carregadas de fantasias e outras formas de narrativa. Agora, temos não só uma resposta às dificuldades para lidar com o meio ambiente, mas uma estratégia suficientemente bem estruturada para nos unirmos enquanto pessoas. Pensámos nós!

(A forma como isto tudo se processou no cérebro humano é por demais interessante, mas não é assunto para este texto.)

Ao longo de muito tempo, como sabemos, o bicho Humano evoluiu até àquilo que conhecemos hoje: nós próprios, a nossa família,  amigos,  conhecidos da nossa cidade e todas as pessoas espalhadas pelo mundo. Inclusivamente, aquelas pessoas que odiamos, com as quais não nos revemos (auto-representação) e todo o tipo de rejeição que sentimos para com elas (quanto mais não seja porque não gosta de ananás na pizza e nós adoramos). E sim, estas pessoas que rejeitamos, vieram do mesmo sítio que nós. Temos a mesma base. Então, porque as odiamos?

Embora a nossa visão do mundo seja uma visão imediata (explicada também pelas ciências sociais) e queixamo-nos da qualidade de vida (enquanto espécie), parece-me inegável que, comparando com os nossos antepassados, a nossa qualidade de vida aumentou de forma absurda (no melhor sentido da palavra), o que permitiu que os nossos problemas do presente, em certo sentido, já não sejam os mesmos que os dos nossos antepassados (é importante frisar que não me esqueço dos lugares no planeta onde, de facto, ainda é um problema basilar). Genericamente, ter um abrigo já não é um problema, ter segurança já não é um problema, ter comida suficiente já não é um problema. (Volto a frisar o parêntese anterior).

No entanto, não nos iludamos, criámos novos problemas para nós mesmos.


O facto de hoje estarmos mais protegidos (filosoficamente, “estarmos” levanta algumas questões), tem feito com que, progressivamente, deixássemos de sentir tanto a necessidade do grupo. Atualmente, cada vez mais, cada bicho Humano, preocupa-se maioritariamente com as suas próprias necessidades, cria a sua própria narrativa de vida (auto-percepção consciente) e cria os seus valores: cria a sua própria conduta de vida.

Aquilo que antes era feito em nome do grupo, como forma de proteção pessoal, hoje é feito também, individualmente. Nesse sentido, não é estranho que, inconscientemente, comecemos a olhar mais para nós mesmos e cada vez menos para o grupo. A cola que unia o grupo já não funciona. Pelo menos, não da forma como funcionou até agora. A substância que fazia as pessoas agarrarem-se à cola, perdeu a eficácia.

A forma como reagimos a este fenómeno é de indignação, frustração, medo, ódio e repulsa. Mas, a avaliar, apenas pelo que tenho visto, a pergunta “porque isto está a acontecer?” é raramente colocada. Pelo menos no debate público. Mais uma vez, permitam-me puxar a brasa à minha sardinha, é este o papel fundamental da filosofia na vida das pessoas: perguntar o “porquê?” e o “como?” das questões que mais nos incomodam.

Acredito eu, a atitude filosófica é, até ao momento, o principal caminho para entender por que fazemos o que fazemos. Esta minha frase carrega uma vaidade, consequente da minha auto-percepção consciente. Falarei sobre vaidade num próximo ensaio.

Tentei demonstrar neste texto, podendo estar errado, como o avanço da qualidade de vida, uma coisa que me parece ser o desejo da maior parte das pessoas no mundo, ao mesmo tempo, é paradoxalmente o motivo que tem feito ruir, progressivamente, o mais precioso bem enquanto espécie, civilização e evolução: a coesão social.

Podemos perguntar, agora, no fim, por que então há tantas guerras entre grupos de humanos, tendo em conta que evoluímos num ambiente essencialmente social e de cooperação? Quanto a mim, o motivo é simples: o bicho humano é, por natureza, um bicho que se quer auto-preservar, procurando satisfazer as suas próprias necessidades. Criando, para isso, o que precisa para as satisfazer.

Criar sentido comunitário foi e continua a ser, uma ferramenta útil para se proteger a si mesmo. É a minha tese: a cooperação não é um fim em si mesmo, mas um meio para um propósito mais individual, a sobrevivência e a satisfação das necessidades de cada um. Fica a reflexão (sendo que não sou possuidor da verdade absoluta), somos criaturas intrinsecamente sociais ou somos indivíduos egoístas que usam a socialização como uma tática de sobrevivência?

Já agora, o bicho Humano, hoje, tenta sobreviver ao quê, se já tem o básico satisfeito? Até já, caro leitor.

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Nasci em 1986, em Coimbra. Após formação em Informática de Gestão, vivi 12 anos como fotógrafo. Sempre escrevi sobre o mundo interno e externo, mas nos últimos anos mergulhei com mais foco na psicologia e na filosofia para entender o comportamento humano.

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