Maus-tratos a idosos nas instituições: a indiferença do meio

"Idealizamos as estruturas residenciais para idosos (ERPIs) – ou os conhecidos lares – como uma forma segura de cuidar dos nossos idosos e pessoas vulneráveis. Há muito que os ditos lares têm vindo a reformular (para pior) a sua assistência às pessoas idosas, e a ideia que tínhamos de um lar há 10 anos não é certamente aquilo que encontramos atualmente."

Tempo de leitura: 5 minutos

Idealizamos as estruturas residenciais para idosos (ERPIs) – ou os conhecidos lares – como uma forma segura de cuidar dos nossos idosos e pessoas vulneráveis. Há muito que os ditos lares têm vindo a reformular (para pior) a sua assistência às pessoas idosas, e a ideia que tínhamos de um lar há 10 anos não é certamente aquilo que encontramos atualmente.

De uma forma geral, vemos hoje uma escassez de profissionais de saúde. Enfermeiros são poucos nestas instituições. Algumas delas chegam mesmo ater apenas um enfermeiro para mais de 100 utentes, auxiliares de ação direta, que prestam diariamente cuidados de saúde, sem qualquer nível de formação, direções técnicas e chefias pouco ou nada sensíveis ao envelhecimento e, muito menos, à parte clínica e aos cuidados de saúde dos utentes.

A verdade é que, diariamente, nestas instituições, onde imperam os cuidados centrados na tarefa e não na pessoa, se estivermos bem atentos, conseguimos identificar maus-tratos às pessoas idosas. E não são meramente aqueles que estamos habituados a falar e que estão descritos na literatura como os principais tipos de maus-tratos a idosos, tais como mau-trato físico, mau-trato sexual, mau-trato emocional ou psicológico, negligência ou mau-trato financeiro ou material. Estes são diferentes tipos de abusos, no entanto, a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) também considera outros tipos de abuso às pessoas idosas.

A infantilização do idoso é um mau-trato. Tratar o idoso como uma criança, chamar a “Mariazinha”, a “Lurdinhas”, não é uma forma de carinho. É infantilizar o idoso, é diminuí-lo, é apagar toda a sua história e reduzi-lo apenas a ser a “Mariazinha”. É mau-trato.

A despersonalização do idoso é mau-trato. O assumir que todos os utentes querem lanchar pão com queijo e cevada, e que o almoço é batatas com frango, e se não quiser este menu, não há outro disponível e, por isso, não come, é mau-trato. Assumir que todos os utentes querem ver horas e horas de missa e rezar o terço todos os dias é mau-trato.

A desumanização, ignorando a privacidade da pessoa idosa e a sua capacidade de tomar decisões sobre a própria vida, é mau-trato. Entrar com a pessoa para dentro da casa de banho enquanto lhe fazemos a higiene ou deixá-la ir nua até à casa de banho onde lhe será realizada a higiene é falta de privacidade. Entrar no quarto do idoso sem bater à porta, sem nos apresentarmos, sem solicitarmos consentimento para prestarmos o cuidado, é mau-trato.  Prepara a roupa do idoso sem incluí-lo na escolha é mau-trato. Não permitir que a Dona Ana tenha consigo a agulha e as suas linhas de costura é mau-trato.

Segundo a APAV, outros fatores – estruturais –, como “espaços pouco acolhedores; meios insuficientes ou inadequados; barreiras de mobilidade; pouco pessoal”, são maus-tratos. Ter um belo jardim numa instituição, só para as visitas verem e admirarem, mas que nenhum idoso é autorizado a frequentar, é mau-trato. 

Não permitir que uma pessoa coma sozinha, quando ainda tem essa capacidade, porque demora muito e o refeitório tem de ser limpo em uma hora, é mau-trato. São cuidados centrados nas tarefas, e não nas pessoas.

Deixar um idoso na cama durante longos períodos ou sentado num cadeirão encostado à janela durante toda a tarde são maus-tratos. O uso de contenções físicas ou químicas são maus-tratos. Dar a volta com o lençol entre as pernas do idoso, apertando-o para que este não se possa levantar sozinho, é mau-trato. Não é para prevenir quedas. Não é para a segurança da pessoa. É mau-trato.

Ter barreiras arquitetónicas nas instituições e não fazer nada para que se alterem, ou implementar estratégias para as ultrapassar, é mau-trato. Limita a mobilidade e a autonomia da pessoa idosa? É mau-trato. É considerado mau-trato que os filhos da Dona Maria tenham de agendar visita no horário estipulado pela instituição para poder ver a mãe e não possa entrar no quarto desta sem pedir autorização.

Todos nós já vimos este ou aquele ponto que referi acontecer numa instituição. Nenhum deles foi inventado, ou exagerado (até foi levemente descrito, comparando com o impacto que isto tem na prática). Esta é a realidade diária das instituições, e descrevo porque já a vi, já a senti na pele, já me tirou o sono durante noites a fio. Há várias formas de reformularmos os cuidados dentro das ERPIs, mas, para isso, precisamos de profissionais qualificados, abertos à mudança e, acima de tudo, humanos. A empatia e o respeito são a base de uma relação terapêutica, de um cuidado prestado. E é aquilo que mais falta hoje e que faltará daqui a 20 anos, se nada mudar.

Com isto não quero assustar, evitar a institucionalização dos idosos, nem muito menos aglomerar todas as instituições no mesmo saco. Quero apenas não consentir com estas práticas, não pactuar com cuidados não dignos e sensibilizar as instituições para reformularem os cuidados que estão a prestar. É importante alertar a sociedade em geral para o que realmente se passa nestas instituições – e que ninguém vê.


Fonte
https://apav.pt/wp-content/uploads/2024/02/FI_MTPINIDAEA_2020.pdf

Para contactar a APAV
• Linha de Apoio à Vítima – 116 006 | chamada gratuita | dias úteis das 09h às 21h;
• Através de qualquer Gabinete de Apoio à Vítima da APAV (https://apav.pt/sobre-a-apav/contactos/).

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Enfermeira licenciada pela Escola Superior de Enfermagem de Coimbra. Formada em envelhecimento, funcionalidade e gestão de qualidade. Atualmente a frequentar o Mestrado em Enfermagem de Reabilitação. Apaixonada pela prestação de cuidados ao domicílio, dedica-se a promover a qualidade de vida e o envelhecimento saudável.

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