Nada justifica violência, muito menos violência física. A esta regra exclui-se casos óbvios de auto-defesa, mas este não é um dos seus exemplos. Esta é uma crítica à grave violência doméstica, infelizmente comum (apesar de não ser restringida a este grupo) a mulheres por seus parceiros. Nunca devia ser justificável violência entre casais, familiares e muito menos com crianças a testemunharem tais atos violentos. E apesar de acreditar que a privacidade das vítimas deve ser protegida, não devia ser necessário imagens desses acontecimentos serem partilhadas para acreditarmos que é um problema atual. Nem devíamos encontrar, nessas mesmas publicações, comentários degradantes justificando as mesmas ações com frases alusivas a “deve ter feito algo para merecer” ou “ficou cego de raiva, acontece”. E apesar da violência doméstica ser um crime público, a verdade é que nem sempre que testemunhamos tais atos, vemos as situações onde estas queixas trazem com elas consequências: muitos destes abusadores têm o que coloquialmente chamamos “costas largas”, a confiança de poderem fazer “o que quiserem” devido aos contactos e amigos próximos que os iriam ilibar de quaisquer atos possivelmente criminosos. Isto não é uma teoria da conspiração, mas somente uma realidade em meios mais pequenos ou onde situações passadas colocaram a comunidade em alerta. O risco não se limita à sua segurança, como denunciante, mas igualmente da vítima que – caso um agente da polícia bata na porta dum casal aparentemente “em segurança”, sendo o agente incapaz de ler o futuro como no filme “Minority Report” ou tomar ação legal – seja ela vista pelo agressor como a “real denunciante”. Por que está a culpa a ser depositada na vítima que não sai do relacionamento? Como se o país não estivesse numa atual crise financeira e habitacional, como se ignorássemos que estas vítimas podem correr o risco de estarem repetindo padrões geracionais e elas mesmas virem de lares destruídos pela violência… Por que está a culpa a ser depositada na comunidade porque “não denunciou antes”? Como se eles tivessem visão raio x para ver o que acontece em portas fechadas. Por que está a culpa a ser depositada em que não pode evitar o primeiro soco antes dele ser lançado?
Repito, nada justifica violência. Nem uma possível ou real traição, nem “chantagem emocional”. Como adultos há que ter um certo nível de inteligência emocional para parar e respirar, antes de agir erraticamente. E se a nossa saúde mental assim não o permite, então buscamos ajuda a controlar esses picos de agressividade. Nada justifica violência, muito menos violência física – nem quando a nossa visão fica turva de raiva. Além de tomar responsabilidade pelos nossos atos, deviam existir penas adequadas e consequências igualmente graves. Não devemos esperar a violência tornar-se homicídio, para ela ser real. Seja um primeiro amor na adolescência ou um casamento a celebrar as suas bodas de prata, nada justifica ameaças à integridade física ou segurança dos envolvidos. Nem a violência emocional, financeira e sexual deve nunca (repito, nunca) ser justificada dentro destes relacionamentos. Seja ela perpetuada pelo sexo masculino ou feminino, independente do género do outro parceiro. Mas acima de tudo, nada justifica violência física.
Nem acredito que é necessário escrever um lembrete destes em pleno ano 2025, mas quando certos casos infelizmente vêm a público… Algo mexe tanto dentro de nós que a necessidade de gritar o óbvio a plenos pulmões, sobressai acima de tudo o resto.
Continuamos, nos dias que correm, a alimentar estas crenças subconscientes de que existe uma solução rápida e eficaz – uma crença que vem deste sentido de superioridade que sussurra “eu nunca deixaria isso acontecer comigo!”. Como se estas situações acontecessem do nada, sem precedentes ou eventos que levam ao amolecimento da auto-estima das vitimas, deixando-as presas aos pequenos momentos felizes no meio da tortura. Como se todos os abusadores tivessem o seu meio favorito de violência escrito num crachá, ou os relacionamentos viessem com uma cláusula a descrever futuras agressões em letras maiúsculas, num contrato que só o assinas porque “queres”. Na vida real não existem crachás nem contratos, nem sinais com luzes florescentes ou spoilers. Na vida real, as circunstâncias não são preto no branco, e ninguém entra nestas relações por “querer”. Mesmo que a pessoa sinta uma atração psicológica pelo perigo, pela instabilidade, pela adrenalina do “ele ama-me, ele odeia-me”… Isso vem de algum lugar, isso vem por causa dum trauma ou apego ou qualquer coisa, outra crença que grita “tu mereces”. E se em vez de depositarmos todas as culpas nas feridas geracionais que permitiram estes acontecimentos serem normalizad, ou nos agressores que os usam como justificações, ou nas falhas e erros dos nossos sistemas judiciais e sociais e de saúde mental… Que tal analisarmos o problema como um todo? Porque todos esses são fatores, mas existe uma componente cultural.
Durante gerações o provérbio “quanto mais me bates, mais gosto de ti” era um ensinamento comum, e ainda hoje é dito não-ironicamente em famílias onde uma chapada pelo parceiro romântico é respondida com um encolher de ombros e “deves ter feito algo”. Estas crenças normalizam comportamentos disfuncionais, que ao longo das gerações vai aumentando a fronteira entre o “aceitável” e o “perigoso”, até esta ser irreconhecível.
Por que continuamos a justificar uma violência, em vez de a questionar? Por que continuamos a ignorar estas questões sociais, esta normalização de comportamentos tóxicos nos media e na nossa comunidade? Aceitando comportamentos de alarme até a tabela do Bingo estar preenchida, em vez de tomar medidas ao terceiro quadrado em seguida e pararmos o jogo? Quando reviramos os olhos, encolhemos os ombros e deixamos estes casos sair impunes porque “está arrependido” ou “pediu desculpa”. Estamos a permitir que esses indivíduos não sejam obrigados a refletir e mudar as suas ações. Estamos a permitir que a vítima creia que é validada na sua decisão de regressar, ou que sinta que “foi um castigo”, uma falha em si como mulher, como homem, como pessoa. “Talvez se eu mudar” grita aquela voz no interior, que apenas conhece o perigo “tudo volte a como estava antes”. E enquanto a vítima tenta processar tudo isto além dos problemas normais da vida adulta, alguém vendo de fora, sem nenhuma sombra de contexto ou sem oferecer o mínimo apoio emocional, murmura enquanto cruza os braços “Ía ser comigo…!” “Porque ela não vai embora? Deve gostar de levar”.
Nada justifica violência. Mesmo que estas notícias levantem uma raiva dentro de nós que impede-nos de ficar calados. E que faça gerações se unirem para dizer “basta”. Talvez isso seja um bom sinal, talvez num dia não muito distante não precisemos repetir estas três palavras juntas.
Nada.
Justifica.
Violência.