Morreu um rapaz de vinte e dois anos. Um rapaz. O que já é uma tragédia em si: morrer tão novo, quando a vida ainda não teve tempo de abrir as suas janelas todas. Mas não ficou por aí – porque o país não perdoa nada e as redes sociais são hoje o mais implacável dos coliseus. Enquanto a família se desfazia em lágrimas, houve quem fizesse uma festa. Uma festa com emojis e palavras afiadas, como se a morte fosse uma vitória no campeonato de moralidades. Celebraram. Gozaram.
Não sei bem o que sentir perante as touradas. Reconheço a beleza antiga, a liturgia, a pompa quase teatral. Há ali qualquer coisa de arte, sim. Mas depois vem o sangue – e o sangue cala tudo. Contudo, há outra coisa que também me assusta: os radicais. Os de todos os lados. Os que matam em nome de um ideal, os que agridem em nome de um amor, os que berram atrás de hashtags. Sou radicalmente contra os radicais. O radical não vê pessoas; vê símbolos, caricaturas, bandeiras. Vê um toureiro, não vê um filho. Vê alguém para reforçar a narrativa. Ao fazê-lo, perde o contacto com a experiência humana. E ao rirem-se da morte de um jovem, tornam-se mais bárbaros do que a barbárie que dizem combater.
Os imbecis que celebram a morte acreditam ser moralmente superiores. Não percebem que moralidade desaparece no instante em que se festeja o fim de alguém. São iguais aos radicais de qualquer seita: justificam tudo em nome da causa. Hoje é a tauromaquia, amanhã será outra coisa qualquer. Desumanizar o outro torna aceitável a sua aniquilação. O perigo maior é esse: aceitar que a morte de alguém pode ser justa só porque não gostamos daquilo que ele representava.
No meio desta gritaria digital, resta-me acreditar que ainda há gente boa. Gente que não comenta, que não faz threads inflamadas, que não precisa de se exibir como virtuosa. Essas pessoas existem. Veem a notícia, sentem um aperto, rezam ou não rezam, mas respeitam. Em silêncio. Continuam a acreditar que empatia não precisa de plateia. Continuam a amar sem hashtags. E é nesse silêncio que reside a única esperança que vale a pena. O Manuel Trindade, no fim, fez algo maior do que qualquer argumento. Deixou sete pessoas vivas. Sete. É quase bíblico, isotérico, um milagre aritmético. A sua partida transformou-se em semente. O que para uns é fim, para outros é começo. Há mortes que se tornam férteis: dão fôlego, dão passos, dão dias inteiros a quem já os tinha perdido. É o lado terrível e luminoso das tragédias — quando o vazio de uns se converte no sopro de vida de outros. Para a mãe, para o pai, para os irmãos, para os amigos: não há palavras que sirvam. O vazio ocupa demasiado espaço. Só vos posso deixar este abraço sem medida. Aguentem como puderem. Se precisarem, batam. A dor é só vossa, mas a ternura podemos sempre partilhar.