Das imagens, paisagens e representações coletivas mais procuradas, fotografadas e recriadas em qualquer recanto do mundo, são as combinações esplendorosas, de luz (cor) e sombra, de um nascer ou de um pôr do sol. Tanto na alvorada como no crepúsculo dos dias, a intensidade, o fluxo de luz que resulta em paletas cromáticas sempre imprevisíveis, ao incidirem de maneira tão expressiva nas formas e nos espaços, cativa e inspira qualquer olhar ou desprevenido. Marta Sanz, escritora espanhola escreveu: “A pálpebra é/ no fundo/ tão fina/ que toda a luz/ a trespassa. E também o escuro.”
Porém, da claridade e da escuridão não é tudo preto ou branco. Dos arquétipos coletivos, das camadas da nossa mente, ou do nosso inconsciente que é semelhante a tantas pessoas, associamos à sombra o lado negativo, obscuro e reprimido, e à luz o lado revelador, apaziguador, virtuoso. Também por isso, a maioria das pessoas desmotivam-se com os dias escuros, frios, introspetivos. Mas há pessoas que vibram com o contrário, logo um dia bom e bonito não é o mesmo para todos/as. Eu sempre gostei mais dos dias de sombra, com nuvens e chuva que dos dias soalheiros, com luz excessiva e calor. Esteticamente, as sombras, as noites longas, o orvalho, o drama atmosférico, o lusco-fusco e as roupagens de inverno têm um refinado potencial criativo. Provavelmente, quem possua um temperamento mais melancólico, moody, carregado, menos iludido com as receitas de positividade adocicada, consiga encontrar nos cenários cinzentos, das dark colors, os conceitos, a verdade que de formas diferentes todos/as nós procuramos.
Vivo na ilha da Madeira, e esta ilha quando de longe é avistada, é impactantemente percecionada pelos recortes e silhuetas das suas montanhas, com encostas íngremes e com apertados vales profundos. Os seus picos caminham facilmente com as nuvens, comprimidos num território que toca o mar pelas arribas. Quando os primeiros colonizadores decidiram no início do séc. XV, com a autorização do Infante D. Henrique, iniciar o povoamento, era tão densa a floresta da ilha, que para habitá-la, diz a tradição oral, tiveram de atear fogo durante 7 anos1. Com o passar dos séculos e devido à intervenção e exploração nos seus recursos, o que resta atualmente, mais a norte, desta magnífica floresta primitiva, são 15000 hectares (20% do território) da ilha, designada por Floresta Laurissilva com espécies únicas no Mundo (e Património da Humanidade pela UNESCO, desde 1999). A Madeira começou a ser eletrificada em 18972, logo na sua origem e durante muitos anos a ilha foi um lugar de sombra. Dada a orografia, movimentar-se nos seus trilhos seria ainda mais difícil ou arriscado, entre a exuberância de plantas e árvores centenárias!
Pelas radicais transformações, retrocessos que vivemos na contemporaneidade, tento perceber como seria, como é viver num território de sombra, ou mais precisamente viver na obscuridade, que não tem como habitat o desafio e a frescura das florestas naturais, mas o desconcerto, a violência e a doença da selva humana! Nunca como agora o projeto humano poderia ser o mais evoluído e nunca como agora foi o mais grotesco!
Precisamos de novas destrezas para viver no limbo, recriando a sobrevivência e conservando a ética, viver na escuridão com avistamentos ou reacendimentos de luz. Como disse o filósofo Franco Berardi, no jornal Público: ‘Temos de criar as condições para a alegria e a solidariedade durante a agonia.’ Também no jornal Público, a companhia de circo franco-alemã, Baro d’evel refere: “O mundo está a arder, há incêndios para apagar por todo o lado e, como loucos, estamos ocupados a criar? Mas que mais poderíamos tentar se não explorar o gesto poético, iniciar o encontro rumo à criação de uma obra? Criar é tentar apagar fogos, é a procura da unidade, é a teimosia em relação ao impossível, esta ânsia de despertar o melhor que há em nós”, justifica Camille na nota de intenções, como que antecipando que o que se segue é frágil, ingénuo e desajeitado, como a beleza. Mas há outra via? (…) Sigamos então esta singular fanfarra, enquanto ela desbrava o caminho através do aterro monumental em que o mundo se transformou.”3
Na História da Arte, designadamente da Pintura, temos um estilo ou técnica pictórica designado de Tenebrismo, onde o pintor italiano Caravaggio, é o seu genial expoente, na forma cénica e exuberante como trabalha os corpos contorcidos e respetivos jogos de luz e sombra ou efeitos plásticos de claro-escuro. Aqui, tudo nasce no vazio, pela noite e pela sombra. Perante uma pintura, uma fotografia, uma cenografia, um acontecimento real, que aconteça na tensão das silhuetas e das cores ocultas, tudo parece mais verosímil e no limite da revelação. Também eu no passado quando pintava, lembro-me de em telas enegrecidas pelas tintas, procurar resultados formais que se materializavam pelo mínimo de luz necessária. É como se eu sempre soubesse, que a luz ou a cor nunca passariam disso, de um acaso possibilitado pelo desconhecido. Com a existência passa-se o mesmo.
Penso que procuramos o mesmo nas nossas frágeis respostas e conexões pessoais, nos ambientes favoráveis à penumbra ou ao dilúculo, com pequenas fontes de luz, quando vamos aos espetáculos, ao cinema, aos museus, às encenações teatrais, aos templos, às bibliotecas, aos cafés intimistas ou a algumas ruínas e recantos abandonados, onde o acaso ou projetos de iluminância, de Lighting Design criam significativas atmosferas, diálogos e narrativas.
Mais do que nunca e devido ao aumento destrutivo da temperatura média do nosso planeta, há que continuar a estudar, a debater com equipas interdisciplinares e artísticas o planeamento dos espaços urbanos e das cidades, contra o excesso de luz e calor, designadamente privilegiando as zonas verdes, criando estruturas sustentáveis de sombra, priorizando a plantação de árvores e regulando a iluminação noturna que tanto impacto tem nos animais e ecossistemas.
Tendemos a escolher as efabulações de positividade em contraponto à negatividade, tal como o fazemos com as sombras em relação à luz, porém esquecemo-nos com facilidade, da natureza dupla de tudo o que existe. A sombra nem sempre é obscuridade tal como a luz nem sempre é profética. Outras questões se levantam: – A nossa autenticidade, a nossa nudez revela-se em que escalas de luz e de sombra? – O que nos ilumina renega o quê para a sombra? – Quantos são os passos certos de claridade e escuridão, na criação de filamentos relevantes com o mundo?
- https://aprenderamadeira.net/article/madeiras ↩︎
- https://aprenderamadeira.net/article/energia-eletrica ↩︎
- https://www.publico.pt/2025/07/03/culturaipsilon/noticia/mundo-perdido-nao-vamos-baixar-bracos-nao-pedem-baro-devel-2138562 ↩︎
Nota: o título deste artigo advém do poema, ‘As coisas que nos circundam’, de Hilda Hist, do livro Roteiro do Silêncio.