Entre o medo e a promessa: o lugar da IA na escola

"Infelizmente, em Portugal, esse debate tem sido tudo, menos célere. Lento, tímido e, por vezes, desconectado da realidade das salas de aula, continua sem uma visão integrada, crítica e, acima de tudo, pragmática."

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Com o aproximar de mais um ano letivo, regressa também — como quem nunca chegou a sair — a já epidémica crise da falta de professores. Mas, desta vez, há algo mais a pairar sobre o futuro da escola: a ascensão das novas tecnologias e, em particular, a proliferação da Inteligência Artificial (IA), que levanta questões tão pertinentes quanto incómodas. Acredito que, apesar dos receios legítimos e das muitas interrogações, a inteligência artificial poderá ser, paradoxalmente, uma válvula de escape para muitos dos problemas que hoje afligem o ensino. E, sim, poderá até ser parte da resposta à escassez de docentes — mas já lá vamos. 

No final da década de 2010, começaram a dar-se os primeiros passos sérios no desenvolvimento de sistemas de IA. O mundo, nesse momento, mal suspeitava dos desafios que se avizinhavam, mas também das potencialidades que este avanço tecnológico traria consigo. O setor da educação não foi exceção. Desde então, académicos, docentes e a sociedade civil têm vindo a debater (com mais ou menos entusiasmo, com mais ou menos resistência) o lugar da IA na escola. Infelizmente, em Portugal, esse debate tem sido tudo, menos célere. Lento, tímido e, por vezes, desconectado da realidade das salas de aula, continua sem uma visão integrada, crítica e, acima de tudo, pragmática. Não é objetivo deste pequeno texto aprofundar todas as dimensões dessa discussão. Apenas me parece relevante, enquanto observador atento, levantar algumas questões que têm vindo a circular.

Falemos das limitações. Os mais céticos — e são muitos — não tardam a apontar os riscos da IA no ensino. Dizem que cria dependência, que atrofia o espírito crítico, que aumenta a dívida cognitiva dos alunos, que desvaloriza a carreira docente tal como a conhecemos. Há quem alerte para a redução das interações humanas, para o comprometimento do desenvolvimento social e para a possível imprecisão dos conteúdos gerados — afinal, nem sempre a IA acerta, e o erro pode sair caro. E não esqueçamos os dilemas éticos: o plágio, os direitos de autor, a honestidade académica colocada em causa. A lista de preocupações é longa. 

Contudo — e aqui entra o reverso da moeda —, afastando-nos um pouco deste mar de ceticismo onde muitos professores — mas não só —, por força da idade ou da formação, ainda se veem afogados, vale a pena olhar para o que a IA também pode oferecer. Porque a verdade é que oferece. E muito.

A começar por um ensino mais personalizado, adaptado ao ritmo e às necessidades de cada aluno. A IA pode ser uma ferramenta valiosa de apoio ao estudo, permitindo, por exemplo, criar apontamentos sistematizados com base nas aulas, gerar exercícios, responder a dúvidas em tempo real. Tudo isto contribui para o desenvolvimento de um estudo mais autónomo — e menos dependente de explicações privadas, o que, convenhamos, pode fazer a diferença no orçamento de muitas famílias.

Mas não ficamos por aí. A IA tem ainda a capacidade de analisar grandes volumes de dados, identificando lacunas de aprendizagem que, de outra forma, poderiam passar despercebidas. Cabe depois aos professores — sim, aos professores — atuar sobre esses sinais e ajustar estratégias. Não, a IA não vem substituir ninguém. Vem, talvez, reformular papéis, questionar métodos e abrir novas possibilidades. E isso, para quem quiser ver, é uma oportunidade. Ou, pelo menos, um ponto de partida para uma nova forma de ensinar e aprender.

Além disso, a IA não só agiliza a criação de materiais didáticos, como também permite otimizar o processo de avaliação — assegurando maior precisão e  imparcialidade — e, talvez o mais relevante de tudo, pode aliviar a pesada carga  burocrática que continua a consumir horas e horas do tempo dos professores. É justamente esta burocracia — exaustiva, repetitiva, desmotivadora — que muitos docentes repudiam. Soma-se a isso a já conhecida precariedade das condições laborais, e o resultado é óbvio: uma profissão cada vez menos atrativa e emocionalmente drenante.

E, no entanto, há aqui uma oportunidade. Se a IA for verdadeiramente colocada ao serviço dos professores, sem anular o seu papel central, ela pode libertar tempo — tempo precioso —, que pode ser reinvestido no que realmente importa: a construção de aulas dinâmicas, criativas, significativas. Aulas que despertem curiosidade. Aulas que promovam diálogo. Aulas que aprofundem a relação entre o professor e os seus alunos — porque ensinar é, antes de mais, uma relação humana.

Todavia, sejamos realistas: nem tudo é um mar de rosas. Para que esta boa relação entre a escola e a IA aconteça, é fundamental começar pelo princípio: formar os professores. Capacitar o corpo docente para entender, dominar e aplicar a IA de forma crítica e consciente. É preciso não só desmistificar as ferramentas, mas também preparar os professores para formar alunos capazes de navegar neste novo mundo digital. Faz parte da missão da escola ensinar os jovens a confrontarem a informação, a desconfiarem do facilitismo. Trata-se, no fundo, de um verdadeiro exercício de cidadania digital.

Contudo, só isto não chega. Se queremos de facto modernizar o ensino, temos de  tocar num ponto sensível: a avaliação. Não podemos continuar a exigir dos alunos os mesmos trabalhos de sempre, os mesmos testes intermináveis, os mesmos moldes de avaliação que existiam antes da IA. O contexto mudou. Os métodos também têm de mudar. Faz mais sentido, hoje, apostar em trabalhos de grupo, apresentações orais, ensaios críticos, projetos artísticos. Formas de avaliação mais ricas, mais complexas, mais próximas da realidade — e muito mais difíceis de replicar com um simples comando num chatbot. A escola precisa de acompanhar o mundo. E, quem sabe, com a ajuda da IA, talvez o ensino possa finalmente voltar a ser um lugar de descoberta — para os alunos, mas também para os professores.

Acredito que as ideias que aqui partilhei ao longo destas reflexões podem, em termos práticos, tornar a carreira docente mais atrativa. Mas não nos iludamos: sem uma verdadeira valorização por parte dos governos, de pouco servirá a introdução de novas tecnologias ou metodologias se os professores continuarem mergulhados na precariedade, pressionados por um custo de vida que cresce de forma galopante e por condições laborais cada vez mais desmotivadoras. A valorização salarial não é um luxo, é um imperativo. É o ponto de partida mínimo para devolver à profissão a dignidade que lhe é devida.

Mais ainda, é essencial que o governo abandone a tentação de transformar a escola num campo de batalha ideológica, especialmente quando se apropria da agenda da extrema-direita, promotora de teorias da conspiração. A escola não pode ser tratada como arma de propaganda, nem como escudo político. O que se exige ao governo é outra coisa: que traga para o centro do debate o contributo das novas tecnologias; que promova um ensino igualitário, inclusivo e que cumpra a sua função essencial de ser um verdadeiro elevador social. Porque, no fim de contas, é na escola que se desenha o futuro da sociedade. A escolha que temos pela frente é, na verdade, muito simples: ou construímos uma sociedade informada, capaz de tirar partido das tecnologias emergentes e de exercer pensamento crítico, ou deixamos que cresça uma geração desprovida das ferramentas básicas para interpretar o mundo, vulnerável à desinformação e à manipulação, sem preparação para enfrentar os desafios — e  as promessas — do século XXI. A escola não pode continuar a ser adiada. Nem o futuro.

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Francisco Duarte Barbosa, natural da Madeira, nasceu a 18 de março de 2004. Licenciado em História na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

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