Porque a cultura do desempenho, da performance é uma missa onde o descanso é heresia. E porque, no fundo, ainda achamos que somos especiais demais para sermos substituídos. (Spoiler alert: não somos. O nosso empregador e clientes sobrevivem sem nós.)

Tempo de leitura: 5 minutos

Por alguém que também achou que o mundo ia acabar se não respondesse a um e-mail, ou pior, se atendesse o telemóvel.

A primeira vez que fui de férias com culpa, levei o portátil. A segunda, levei dois e o telemóvel de trabalho. À terceira, levei só a cabeça – que, como qualquer portátil, precisava urgentemente de ser reiniciada. O problema é que ninguém nos ensina a desligar. Ensinaram-nos a trabalhar, a render, a ser úteis. A parar? – Aí, desenrasca-te.

Disseram-nos, com ar sério e outfit formal e bem engomado, que férias são um luxo. Um prémio. Como se fossem uma sobremesa rara num restaurante com estrela Michelin, e não a digestão necessária de um ano inteiro de engolir sapos. E nós, bons alunos da escola do “não te queixes”, acreditámos. E assim nasceu a culpa. Porque há um macaquinho no nosso sótão que sussurra ao ouvido: “quem para, perde”. Porque a cultura do desempenho, da performance é uma missa onde o descanso é heresia. E porque, no fundo, ainda achamos que somos especiais demais para sermos substituídos. (Spoiler alert: não somos. O nosso empregador e clientes sobrevivem sem nós.)

A culpa de tirar férias é o filho bastardo de um sistema que idolatra o “estar sempre ligado” e ostraciza o repouso. O nosso cérebro, coitado, vai atrás: aprendeu que notificação é amor. E sem amor digital, entra em crise de identidade. “Se não me estão a pedir nada, quem sou eu?” E depois há a ruminação: aquele festival mental onde revemos reuniões como se fossem episódios de uma série má. Não é só cansaço. É vício. Vício de utilidade.

E o impacto que têm as férias no bem-estar e na saúde mental? Gigantesco. É como ir a um spa, mas para a cabeça – e com os dados todos na cloud. Quando o cérebro não está ocupado a resolver problemas, aproveita para arrumar as gavetas internas: emoções, memórias, e até aquele trauma do PowerPoint que crashou à frente da administração.

Há estudos. Há gráficos. Há cortisol a descer e serotonina a dançar. Mas mais do que dados, há aquela sensação estranha – quase suspeita – de respirar fundo sem urgência. Como se o tempo voltasse a ter margens.

O descanso faz-nos melhores trabalhadores. Mas mais do que isso, faz-nos melhores pessoas. Daquelas que não discutem sobre o micro-ondas, sobre a marca das bolachas. Ou até com colegas…

E os pensamentos intrusivos relacionados com o trabalho, e quando surgem durante as férias?! São os fantasmas mentais que aparecem quando finalmente há silêncio. Ideias que saltam tipo pop-ups: “E se esqueceste de dar uma informação ao cliente?”, “Será que devias ter usado BCC naquele e-mail?”, “E se…?” Durante o ano, camuflamo-los com reuniões. Nas férias, ficam à solta. Mas não é defeito – é hábito. O cérebro, viciado em tarefas, inventa preocupações só para não perder o ritmo.

A solução não é calá-los à força. É deixá-los passar. Como quem vê nuvens. Estão lá, mas não mandam. E se insistirem, há sempre o truque infalível: uma bebida fresca, mar calmo, pés na areia. Nenhum deadline sobrevive a isso.

Existe esperança! Primeiro: planear o desligar como se fosse uma auditoria. Não é exagero, é prevenção. Depois: aceitar que o corpo chega à praia antes da cabeça. E que está tudo bem em demorar dois dias a perceber que não há reports nas conchas. Criar rituais ajuda. Desinstalar aplicações. Deixar o portátil em casa (sim, mesmo que o sinta a chorar na mochila). Trocar a agenda por um livro e meia dúzia de boas revistas/jornais. E, sobretudo, praticar a arte perdida do “não fazer nada com gosto”. E se for preciso, repetir em voz alta: “não sou insubstituível”. Porque não és. E isso, em vez de assustar, devia libertar.

Mas as organizações têm a obrigação moral de fomentar uma cultura que valorize o descanso e previna o burnout. O exemplo vem de cima. Um chefe que tira férias mostra mais liderança do que um que responde a e-mails da piscina. Depois, é legislar com coragem: desconexão protegida, direito à pausa, incentivos ao descanso real – não aquele descanso fingido com telemóvel em modo vibrar.

Mas mais do que políticas, é preciso mudar o tom. Parar tem de deixar de ser tabu. O descanso precisa de ser banal, como café ou queixas do tempo. Só aí começamos a curar esta doença coletiva de confundir exaustão com mérito.

As férias não são uma fuga. São uma casa. Um sítio onde o corpo e a cabeça se reencontram. Onde voltamos a ser pessoas, antes de sermos funções. E onde, ironicamente, nos lembramos porque é que trabalhamos: para viver. E não o contrário…

Partilhe este artigo:

Psicólogo no CRPG-Delegação de Coimbra e de Hospitais Privados (Área Clínica / Neuropsicológica).

Contraponha!

Discordou de algo neste artigo ou deseja acrescentar algo a esta opinião? Leia o nosso Estatuto Editorial e envie-nos o seu artigo de opinião.

Mais artigos da mesma autoria: