A traição a Gropius: Bauhaus e o paradoxo da escassez

"Vivemos uma imposição pela escassez. As crises económicas, a precariedade laboral e os salários estagnados afetam as nossas escolhas e as nossas liberdades, forçando-nos a seguir uma via minimalista devido ao contexto e não a uma escolha ou crença pessoal...

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Há mais de um século, Walter Gropius sonhou uma escola onde forma, e função se abraçassem, tornando o belo acessível a todos. Chamou-a Bauhaus, uma utopia erguida entre as ruínas de uma Europa que ainda sarava as feridas da Grande Guerra. A escassez, então, era estímulo à criatividade: menos ornamentos, mais função, mais futuro.

O que diria Gropius se visse o minimalismo dos nossos dias? A estética que nasceu para libertar o quotidiano da ostentação desnecessária tornou-se, ironicamente, a máscara da falta. Hoje, num mundo que aplaude o “menos é mais” como virtude, resta perguntar: escolhemos o “menos” por princípio ou acabamos por aceitá-lo por falta de alternativa?

No século XXI, o “menos é mais” já quase deixou de ser uma escolha, tornando-se uma sentença. Quando o minimalismo se torna obrigatório, o sonho de Gropius transforma-se em pesadelo: o design já não liberta — limita.

Primeiro, é importante entender o contexto de ruptura que deu origem ao movimento Bauhaus. Após a Primeira Grande Guerra, a Europa encontrava-se num autêntico precipício de valores morais e sociais: regimes que outrora pareciam eternos cederam às fissuras abertas pela guerra, desagregando-se e deixando o continente órfão, à procura de reconstrução física e simbólica. Neste cenário, Gropius e os seus discípulos acreditavam que simplificar e libertar o quotidiano dos excessos era um ato de democratização real. Casas, móveis, tipografia e cidades deviam ser belos na simplicidade e úteis para todos. O design industrial prometia um futuro onde a forma seguisse a função, usando somente o necessário — não necessariamente por falta de meios, embora no contexto pós-Primeira Grande Guerra fosse importante a poupança de recursos, mas por convicção estética e ética.

Deste movimento emergiram nomes como Mies van der Rohe, Marcel Breuer e Gunta Stölzl, crentes de que o quotidiano podia ser elevado através da forma pura e acessível. O minimalismo era, então, uma estética de abundância moral: cortar o excesso para expandir as possibilidades de todos.

No entanto, o sonho original da Bauhaus, uma estética de simplicidade libertadora, surge hoje cada vez mais corrompido. No século XXI, o minimalismo transformou-se numa doutrina imposta, e não numa escolha estética ou ética.

Vivemos uma imposição pela escassez. As crises económicas, a precariedade laboral e os salários estagnados afetam as nossas escolhas e as nossas liberdades, forçando-nos a seguir uma via minimalista devido ao contexto e não a uma escolha ou crença pessoal.

O que antes era uma opção consciente e utópica, que promovia a democratização do belo e funcional, tornou-se um limite imposto pela falta de alternativas. Vivemos numa era em que “menos” é frequentemente sinónimo de “mais barato” — e o mais barato, por sua vez, é quase sempre mais simples, mais básico, fabricado em massa para maximizar lucros e minimizar custos.

Basta olhar para as grandes cadeias de móveis de baixo custo. Produtos que se apresentam como minimalistas são geralmente resultado de processos de produção em massa, embalados para caber em qualquer orçamento. A promessa de democratizar o design cumpre-se, mas à custa de materiais de menor qualidade, durabilidade reduzida, e uma cadeia de produção global que muitas vezes recorre à mão de obra explorada em fábricas espalhadas por vários países. O resultado são peças frágeis, sem alma e descartáveis, que rapidamente se substituem e alimentam uma cultura de consumo rápido e de desperdício, tudo o que Gropius e os seus seguidores pretendiam contrariar.

Este minimalismo forçado raramente contempla a qualidade, a funcionalidade real ou o valor simbólico do design. É um minimalismo de sobrevivência, marcado por estéticas estandardizadas e pela uniformidade de espaços, casas e objetos, que perde identidade para caber num molde global. O design deixa de ser uma força de elevação coletiva para se transformar numa etiqueta de baixo custo. 

Assim, o minimalismo do nosso tempo, longe de ser uma escolha estética consciente, reflete as desigualdades e limitações económicas que moldam os nossos estilos de vida. A utopia de Gropius tropeça num paradoxo cruel: a forma já não segue a função por convicção, mas por imposição.

No entanto, ainda é possível resgatar o sonho original da Bauhaus. Para isso, é preciso rever o design como compromisso ético, social e ambiental. Pequenos ateliers, artesãos locais e movimentos como o slow design são sinais de que outro caminho é possível: criar objetos duráveis, feitos com materiais responsáveis, que respeitem a identidade de quem os cria e de quem os usa. Produzir menos e melhor, não por falta de recursos, mas por opção consciente.

A Bauhaus não pereceu: sobrevive em cada designer que recusa a uniformidade, em cada criador que insiste em unir forma, função e responsabilidade social. Se quisermos honrar Gropius, devemos voltar a acreditar que o belo não precisa de ser luxo, nem o essencial, sinónimo de pobreza. 

O “menos” pode voltar a ser mais, mas apenas quando for escolha, nunca sentença.

“Eine moderne, harmonische und lebendige Architektur ist das

sichtbare Zeichen einer authentischen Demokratie.”

– Walter Gropius


Referências bibliográficas:

  1. Bayer, H., Gropius, W., & Gropius, I. (Eds.). (1938). Bauhaus, 1919-1928. The Museum of Modern Art. New York Graphic Society.
  2. Wingler, H. M. (1969). The Bauhaus: Weimar, Dessau, Berlin, Chicago. MIT Press.
  3. Meyer, J. S. (2004). Minimalism: Art and polemics in the sixties. Yale University Press.

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João Luís Pinho Branco Ferreira, nasceu a 31 de março de 1994 e é natural de Ovar. Com formação académica em História e uma ligação forte ao associativismo político.

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