Muito se fala da fraca oferta cultural em Portugal, mas só recentemente se começou a falar da carga horária do cidadão comum. – É preciso falar de tempo.
Não só para que exista uma janela temporal onde seja possível caber o descanso físico e reparador, mas onde possa também caber um descanso de uma determinada realidade ou linha de raciocínio. O descanso é importante para repor novas energias para o dia seguinte e para consolidar aprendizagens. Não é só importante biologicamente, é inegociável.
O descanso vai muito além de uma boa noite de sono. Passa pelo abrandamento, pelo ócio e por atividades de lazer que nos façam mudar o ritmo e a atenção. É o tempo que o cidadão comum teria para mexer o corpo, observar, assimilar e para despender no seu próprio conflito interno. Este conflito interno que só existe e resulta em mudança se o indivíduo tiver acesso a novos cenários e propostas. A cultura, como veículo de apresentação de novas ideias e questões, precisa de espaço no quotidiano de cada um de nós.
Este espaço, não pode apenas existir num aumento quantitativo e qualitativo da oferta, mas também num exercício consciente em procurar. Apesar desta procura ser um esforço individual, não podemos esperar que tenhamos todos a mesma predisposição e vontade de a materializar. Não temos todos a mesma vontade de consumir cultura porque temos contextos diferentes, com obstáculos, hábitos e acessos também diferentes. Não temos todos a mesma vontade de consumir cultura porque não temos todos as mesmas 24h.
A verdade é que a grande maioria dos portugueses não tem, nem consegue ter, uma rotina que permita este tempo de dedicação a atividades culturais. Muitos de nós temos de aproveitar o nosso tempo de ‘’descanso’’ em trabalho invisível de cuidado, responsabilidades divididas de forma desequilibrada ou com a carga mental da divisão dessas tarefas, mesmo que a sua execução seja distribuída. Não temos tempo e precisamos de tempo.
É urgente desconstruir também a ideia de que os espaços culturais são para serem ocupados por um grupo específico de pessoas ou que este consumo é supérfluo e menos importante. O privilégio de poder dispor de tempo para usufruir de um espetáculo não deveria ser um privilégio, mas algo acessível à população. Algo democrático.
Precisamos, urgentemente, de refletir sobre quem realmente beneficia de um scroll “infinito” de 2h distribuídas em pequenos vídeos de 15 segundos que, na sua maioria, nada mais são, que vários momentos de publicidade mascarada. Quem realmente beneficia da nossa adição a níveis de dopamina completamente desregulados?Quem beneficia da nossa aversão ao aborrecimento ou ao apenas estar por estar? Precisamos mesmo de ser úteis o tempo todo? Quem beneficia que o nosso tempo de ócio seja usado em favor de adiantar as tarefas de casa ou de cuidar de quem muitas vezes é deixado para trás pela responsabilidade social das grandes instituições?
Precisamos de tempo fora do trabalho para construir a nossa comunidade e dedicar-lhe tempo, mas precisamos também de tempo para usufruir de atividades que façam parte do nosso cuidado pessoal e que nos permitam refletir sobre a nossa realidade para que esta se possa transformar.
A verdade é que nada existe num vácuo e que a realidade é bem mais complexa do que seria possível abordar num artigo de opinião digerível no pouco tempo que temos, mas para além destas questões, será que os mais recentes ataques à cultura não estão intimamente ligados ao benefício de ter uma população menos ativa e protegidos sob uma crescente apatia e correria em piloto automático que nos faz chutar para segundo plano esta estrutura tão rica?