Pensar, mesmo quando parece ridículo

"A crença contemporânea numa Terra plana, embora assente numa base factual frágil (para ser generoso), revela outro tipo de fenómeno. Não tanto uma disputa científica, mas uma desconfiança cultural profunda. Uma recusa da autoridade, do saber instituído, da “narrativa oficial”. O que torna o fenómeno interessante não é o conteúdo da crença, mas a forma como a sociedade a combate [...]"

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A crença de que a Terra é plana tornou-se, nos dias que correm, sinónimo de delírio. Um desvio tão extremo à lógica que já nem se discute – apenas se descarta. É uma ideia que serve de caricatura para tudo o que parece irracional, absurdo, ou desinformado. E, no entanto, a segurança com que hoje se rejeita essa hipótese (e bem, no meu entender) levanta uma questão desconfortável: como distinguir o que é verdade do que é apenas aquilo em que todos acreditam?

Houve um tempo em que a ideia de que a Terra não estava no centro do universo era vista com o mesmo grau de desdém. Uma ideia maluca, própria de excêntricos e perigosamente contrária à ordem estabelecida. A reação foi semelhante: riso, insulto e censura. E, claro, aquela convicção de que “é evidente que não pode ser assim”. O paralelismo não serve para nivelar o conteúdo das ideias – serve para revelar o mecanismo, para Reconhecer o Padrão. Para entender a forma como a sociedade lida com o que desafia o que parece óbvio.

O valor simbólico da “loucura”

Durante séculos, o geocentrismo foi mais do que um modelo astronómico – era um alicerce simbólico. A ideia de que a Terra ocupava o centro do universo correspondia à visão de um mundo ordenado, hierárquico e divinamente estruturado. Desafiar isso era mais do que um erro científico. Era uma ameaça. Como tal, tratava-se com desprezo, punição e escárnio. O caso de Galileu é particularmente ilustrativo: não foi perseguido por fazer má ciência, mas por insistir numa visão que punha em causa toda uma cosmologia – espiritual, política e cultural. A resistência não nasceu da falta de argumentos, mas do desconforto profundo com a mudança de paradigma. Nem sempre a verdade se impôs pela razão, mas pela persistência de quem duvidou com fundamento. E essa persistência, tantas vezes solitária, quase sempre desconfortável, foi o que permitiu que certas ideias atravessassem séculos até se tornarem evidências inquestionáveis.

É um exercício útil, portanto, pensar no tipo de ideias que hoje são automaticamente rejeitadas – não com argumentos, mas com escárnio. Se a História ensina alguma coisa, é que o filtro da verdade raramente é imediato. E quase nunca é confortável. O pensamento que resiste, que incomoda, que parece maluco… nem sempre é. E quando é, convém sabê-lo, sem asteriscos.

O contraste contemporâneo: a Terra plana

A crença contemporânea numa Terra plana, embora assente numa base factual frágil (para ser generoso), revela outro tipo de fenómeno. Não tanto uma disputa científica, mas uma desconfiança cultural profunda. Uma recusa da autoridade, do saber instituído, da “narrativa oficial”. O que torna o fenómeno interessante não é o conteúdo da crença, mas a forma como a sociedade a combate: não com paciência ou argumentação, mas com escárnio imediato. A mesma reação – em forma e intensidade – que em outros tempos se dirigiu a ideias que hoje são pilares do conhecimento.

É precisamente esse paralelismo de atitudes que merece atenção. Não para reabilitar o terraplanismo, mas para expor o automatismo com que se separa o aceitável do inaceitável no discurso público. O insulto tornou-se um filtro tão eficaz quanto inconsciente. E isso, mais do que proteger a verdade, parece proteger o conforto. A facilidade com que se exclui um pensamento, mesmo que absurdo, diz tanto sobre esse pensamento como sobre a fragilidade de quem o rejeita.

Humildade como exercício intelectual

A certeza tem uma qualidade anestesiante. É confortável. Dá estrutura ao pensamento, permite decisões rápidas, protege da angústia da dúvida. Mas tem também um efeito colateral perigoso: reduz a escuta. Quando uma ideia se instala com força suficiente, tudo o que a contraria parece irrelevante. Ou ofensivo. A verdade passa a não precisar de defesa, apenas de repetição. O erro, por sua vez, já não precisa de ser desmontado – basta ser rotulado. O problema não está em reconhecer o absurdo de certas posições. Está em esquecer que, ao longo da história, aquilo que hoje é convicção já foi, muitas vezes, motivo de riso. A diferença entre uma ideia visionária e uma ideia tola, em certos momentos, não está no conteúdo, está no tempo. É por isso que a humildade não é tão-só uma virtude moral, mas um instrumento crítico. A capacidade de reconhecer os próprios limites, de aceitar que a razão tem fronteiras e que o consenso pode errar, é o que distingue a reflexão da mera repetição. Pensar exige mais do que conhecimento: exige carácter. E esse, não se mede por estatísticas nem se certifica por diplomas. Mede-se pela honestidade de quem é capaz de duvidar, sem asteriscos.

O tempo como filtro cruel

O tempo não tem pressa. E é, quase sempre, cruel com as certezas. Aquilo que hoje parece indiscutível pode, mais tarde, ser visto como um equívoco coletivo. E o que hoje é motivo de escárnio pode, no futuro, ser recuperado com espanto e admiração. A história não pede certezas; pede lucidez. Pede a coragem de pensar para lá do aplauso imediato e de aceitar o silêncio, o riso ou a incompreensão que isso possa trazer. Porque o pensamento crítico não se faz à mesa dos consensos, mas nas margens onde ainda há perguntas por responder.

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Arquiteto | Urbanista | Músico – Sócio-gerente na PORTA AZUL Arquitetos – Membro da Assembleia Geral da ABAP – Associação Beira Atlântico Parque

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