Exibir a Baixeza

Consideremos bizarro, feio, cínico ou até ofensivo. Pensemos (...) que foi um ato encenado e que o mais famoso dos Donalds não atendeu, de facto, aos pedidos da clientela. Não importa, é eficaz.

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Embora mal situado no tempo, uma vez que refere a algo ocorrido no ano passado, o comentário que me oponho a fazer incide sobre algo que teimou em colar-se na minha retina, apesar de imensa resistência da minha parte. De vez em quando, dou por mim a refletir sobre aquela exibição, ou melhor, sobre aquele paroxismo que
creio ter dado ao atual líder mais influente do mundo ocidental, para melhor ou pior. A que me refiro, em concreto? Perdoe-me o leitor pela narração que se segue.


O surreal dispõe-se perante nós sempre que cremos que duas realidades distintas não se podem misturar. Quando o fazem, apresentam-se não como partes individuais, nem tampouco como elementos de um todo, mas como metamorfose distinta e chocante. E chocados ficámos todos diante da singular imagética proporcionada por um bilionário, então ex-presidente e candidato, que se resigna, por um dia, ao papel de funcionário da cadeia de fast-food McDonald’s.


Muitos abanarão freneticamente as cabeças, algumas encanecidas, em busca de uma explicação suficientemente esclarecedora para tal epifenómeno. Dir-se-á que é um mero apelo às classes trabalhadoras: não chega. Sentenciar-se-á que é uma tentativa de se revestir das facetas de homem comum: quase lá, mas peca-se por defeito. Convenientemente, Pierre Ostiguy1 apelida isto da arte de “exibir o baixo”. O eminente autor que está na origem da definição sócio-cultural do conceito de populismo, entende que este é norteado essencialmente por devaneios performativos que visam aproximar o político do seu eleitorado de base. Opõe-se à noção de “exibir o baixo” a dimensão “exibir o alto”. Um destina-se a mimetizar o comportamento do povo, o outro a reproduzir as “mordomias das elites”. Com base neste enquadramento, compreende-se a opção de Trump por um vocabulário mais vulgar, uma retórica menos cuidada e atos como o de vestir o colarinho e procurar assemelhar-se ao eleitor de mínimo salário.

Não obstante a criatividade de Ostiguy, tendo a discordar de alguns aspetos da sua tese. Sim, é certo que a performance é uma componente fundamental do populismo, mas o ideário veiculado é tão ou mais importante. A divisão da sociedade num campo de batalha que congrega em armas os antagónicos Bem e Mal, por exemplo, é fundamental para galvanizar o ressentimento popular. Por outro lado, “exibir o baixo” revela um certo preconceito, uma determinada arrogância de classe que por vezes contamina a casta intelectual. Os trejeitos, expressões e até calões de um grupo são fruto do seu contexto. Enfeitá-los com adjetivos é eludir o ponto fundamental.

Proponho então que se dedique outro olhar ao momento que nos traz aqui. Ora, todos os cidadãos americanos têm noção de que Donald é um magnata que expandiu a hegemonia da sua família, uma vez que já o seu pai, Fred Trump, era um nome sonante no comércio imobiliário. Ninguém acreditará verdadeiramente em fantasias sobre origens humildes, nem o pretende o candidato republicano. A intenção está na representação de um indivíduo que, apesar do seu berço, renega os preconceitos, as expressões, enfim, o modus vivendi das elites americanas num sacrifício benevolente e abnegado em nome da população comum. Eis o derradeiro ato de fé no povo. Mesmo que tudo não passe de um gesto pueril e que, no final do expediente, Trump dispa as vestes encardidas pelas gorduras saturadas para nunca mais as usar, cá temos o derradeiro homem da providência, qual Cristo redentor, numa terra em que os homens da providência são esculpidos em montes. O mais genuíno dos líderes antissistema será, precisamente, aquele que até tem oportunidade para se manter e beneficiar ao máximo do sistema, mas abdica dele em nome da causa popular. E o que importa é a subjetividade.

Se corações e mentes foram conquistados por esta representação dissimulada, então a genuinidade não precisa de surgir vinculada à veracidade. Do mesmo modo que a autenticidade nas redes sociais, não necessita de expressão tangível no plano dos factos, mas antes do despertar de paixões que, na era da pós-verdade, são tão reais quanto a própria realidade, pese o paradoxo.

Consideremos bizarro, feio, cínico ou até ofensivo. Pensemos, tal como o corpo editorial do jornal G1, que foi um ato encenado e que o mais famoso dos Donalds não atendeu, de facto, aos pedidos da clientela2. Não importa, é eficaz.

  1. http://siba-ese.unisalento.it/index.php/paco/article/view/21980 ↩︎
  2. https://g1.globo.com/mundo/eleicoes-nos-eua/2024/noticia/2024/10/21/trump-encenou-servir-batatas-em-mcdonalds-fechado-ao-publico-diz-jornal.ghtml ↩︎

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Mestre em Ciência Política pela Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho. Dono de um canal de Ciência Política com mais de 10.000 subscritores no Youtube. Autor do podcast Pura Ideologia e do livro Monólogos a Dois.

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