60% de humanidade

“Durante anos, as pessoas com diversidade funcional foram deixadas para trás. Não por desumanidade, mas por omissão.”

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Há quem diga que o papel aguenta tudo. E é verdade. Mas há certos papéis que não são só folhas. São escudos. São âncoras. São, no fundo, formas de dizer a uma pessoa: “nós vemos-te.”

Ter um atestado multiusos com 60% ou mais de incapacidade em Portugal é muito mais do que ter uma percentagem num documento. É, antes de tudo, um ato de validação. A admissão formal – do Estado, da sociedade, de quem manda e de quem julga – de que aquele corpo, aquela mente, aquele percurso, merecem mais do que piedade: merecem auxílio, cooperação, equidade.

Durante anos, as pessoas com diversidade funcional foram deixadas para trás. Não por desumanidade, mas por omissão. Pela indiferença de quem tem medo de encarar o que pode um dia ser seu destino. Porque a deficiência não escolhe. Ela vem com a nascença, com o acidente, com a idade ou com o acaso. Não avisa. Só chega. E quando chega, muda tudo.

O atestado médico de incapacidade multiuso (AMIM) é o ponto de viragem. Pela primeira vez, muitos sentem que não estão sozinhos, que há um sistema, imperfeito (mas real), que reconhece a luta que travam todos os dias – levantar-se, tratar-se, deslocar-se, trabalhar ou procurar trabalho. No fundo, resistir.

Com esse atestado, chegam as isenções no Serviço Nacional de Saúde. Já não se paga para ir ao médico, porque a vida já cobrou caro demais. Os medicamentos passam a ser comparticipados – porque ninguém devia escolher entre tomar o que precisa ou pagar a conta da luz. O Estado, pela primeira vez, diz: “Tem aqui este apoio técnico. Este andarilho. Esta cadeira. Este aparelho auditivo. Esta ortótese. Nós ajudamos!”

E depois há o lado prático, que parece pequeno, mas que muda vidas: prioridade nas filas, benefícios fiscais, crédito bonificado, acesso facilitado à habitação pública, transporte gratuito para consultas, majoração das pensões. Coisas simples que, para quem vive no limite, são tudo. No trabalho, há leis que protegem – e, mesmo que a realidade fique aquém, saber que o seu lugar está previsto por direito é um alívio. Há um nome para isso: dignidade. Saber que não se está a pedir favor. Está-se a reclamar o que é justo.

No mercado de trabalho, as quotas são a resposta legal ao silêncio social. Empresas com mais de 75 trabalhadores são agora obrigadas a reservar espaço para quem foi sempre deixado de fora. E a Administração Pública tem finalmente lugares marcados para quem antes nem era convidado. Não é caridade – é justiça. A lei não impõe pena, impõe inclusão. E num país onde a deficiência sempre foi escondida, estas quotas são faróis: pequenos, mas acesos.

Mas mais do que todas as regalias e reduções, o que o atestado dá – de forma silenciosa, mas profunda – é validade emocional. Um filho pode finalmente provar ao patrão que tem de faltar para cuidar do pai doente. Um cuidador sente-se legitimado. Sim, o processo é lento. Sim, há falhas. Mas também há conquistas. O caminho até aqui foi feito de passos curtos, mas teimosos. O AMIM não é a meta. É o ponto de partida para uma sociedade que, finalmente, começa a tratar os seus membros mais vulneráveis não como fardos, mas como cidadãos de pleno direito.

São políticas com falhas, sim. Mas são também sinais de uma consciência social que, mesmo aos tropeções, se vai construindo. Talvez um dia deixemos de precisar de papéis, carimbos ou percentagens para provar o que devia ser óbvio: que toda a pessoa – com 60%, 30% ou apenas o cansaço dos dias — tem direito a viver com dignidade, segurança e respeito. Não porque a lei o diz, mas porque a humanidade o exige. Porque Portugal só é íntegro quando cuida dos que mais precisam.

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Psicólogo no CRPG-Delegação de Coimbra e de Hospitais Privados (Área Clínica / Neuropsicológica).

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