Portugal aos Portuguezes? Trinta anos depois, ainda sangra.

"...muitos indivíduos ligados a grupos de extrema-direita são libertados poucas horas depois de detenções motivadas por atos de violência. Esta leveza na resposta penal cria um ambiente de impunidade que, na prática, valida a continuação de crimes de ódio, ameaças e agressões."

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No passado dia 10 de Junho, em Lisboa, o teatro d’A Barraca foi alvo de um ataque perpetrado por um grupo neonazi. O confronto culminou com a hospitalização do ator Adérito Lopes, agredido quando chegava para um espetáculo de entrada livre, evocativo de Camões e intitulado Amor é um fogo que arde sem se ver. O ataque foi levado a cabo por elementos associados ao grupo Blood & Honour, uma organização de inspiração neonazi já referenciada pela Polícia Judiciária e pelos serviços de informações1

A escolha do dia não pode ser lida como acidental. No Dia de Portugal, de Camões e das comunidades portuguesas, data de exaltação da identidade nacional, os agressores colavam cartazes com slogans como “Defende o teu sangue”, “Remigração” e “Portugal aos Portuguezes” — mensagens de pendor nacionalista extremado e assumidamente xenófobo. 

A ironia do momento adensa-se quando se confronta esta ação violenta com os discursos proferidos nessa mesma manhã pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e pela escritora Lídia Jorge. Ambos sublinharam a pluralidade constitutiva da identidade portuguesa, rejeitando visões essencialistas ou puristas. Lídia Jorge foi clara ao destacar a riqueza de um Portugal multiétnico, construído por séculos de encontros, mestiçagens e deslocações. 

Além do mais, este 10 de Junho carrega consigo um peso simbólico adicional: assinalam-se trinta anos desde o assassinato de Alcindo Monteiro por um grupo neonazi. Três décadas volvidas, a sombra desse crime continua a pairar sobre a sociedade portuguesa — e não por acaso. Pelo menos um dos suspeitos do ataque ao ator Adérito esteve envolvido no assassinato de Alcindo2

Na mesma noite em que se deu o ataque ao teatro d’A Barraca, a encenadora Maria do Céu Guerra lembrava, com amargura, que “30 anos depois, este país ainda não arranjou forma de se defender dos nazis”3.A coincidência de datas, episódios e símbolos não deve ser ignorada: não se trata apenas de eventos dispersos, mas de sinais evidentes de um fenómeno que resiste ao tempo. É forçoso reconhecer que, trinta anos depois, a extrema direita permanece enraizada no tecido social português. Por vezes discreta, à espreita nas margens, mas sempre pronta a emergir em momentos estratégicos, trazendo consigo violência.

Os episódios têm-se multiplicado com inquietante regularidade. Basta recordar o que aconteceu em Lisboa no passado 25 de Abril, durante a comemoração dos 51 anos da Revolução: uma manifestação pacífica e autorizada viu-se manchada por confrontos e provocações levadas a cabo por figuras como Fonseca e Castro, ex-juiz e líder do partido de extrema-direita Ergue-te, e Mário Machado, rosto do grupo neonazi “1143”4

Todavia, Portugal não está sozinho nesta deriva. Por toda a Europa, o extremismo cresce, alimentado por discursos de ódio, xenofobia e um mal-estar difuso que cavalga o descontentamento com a corrupção, a crise social ou a imigração. As redes sociais, e em particular o X (antigo Twitter), tornaram-se os grandes palcos dessa radicalização. Ali, líderes de grupos extremistas e até representantes de partidos legitimados nas urnas desfilam livremente o seu ódio e desinformação, sem pudor e sem filtro5. São essas plataformas que hoje capitalizam o ressentimento, amplificam o ruído e alimentam os focos de tensão que, mais tarde, se traduzem em atos violentos no espaço público. 

Paralelamente, junta-se o aparecimento de uma nova geração de influencers que promovem ativamente discursos de ódio, alimentam redes de discriminação e perpetuam preconceitos, sobretudo contra minorias e contra as mulheres. Um caso paradigmático é o de Numeiro, figura mediática que, não por acaso, manifestou apoio público ao partido de André Ventura nas legislativas de 18 de maio — o partido que, segundo estudos, mais desinformação propaga no espaço público português6

O crescimento do Chega não pode ser dissociado desta equação. Assistimos, de forma cada vez mais evidente, a uma perda de vergonha generalizada no discurso público. Temas como o racismo, a homofobia, a xenofobia ou o sexismo, que durante décadas eram marginalizados do debate político legítimo, reaparecem agora com uma aura de normalidade perigosa. 

Apesar de a ameaça da extrema-direita não ser nova, o atual executivo, liderado por Luís Montenegro, optou por uma postura de silêncio cúmplice. A decisão de retirar do Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) o capítulo dedicado à extrema-direita é, em si mesma, reveladora. Nesse capítulo constava a referência ao grupo Blood & Honour, organização neonazi classificada como terrorista nalguns países europeus7. Ignorar esta realidade é, no mínimo, irresponsável. 

Mais preocupante ainda é a forma como o sistema judicial tem lidado com os protagonistas destes movimentos. À exceção da pena de prisão aplicada recentemente a Mário Machado, muitos indivíduos ligados a grupos de extrema-direita são libertados poucas horas depois de detenções motivadas por atos de violência. Esta leveza na resposta penal cria um ambiente de impunidade que, na prática, valida a continuação de crimes de ódio, ameaças e agressões.

Precisamos de autoridades que façam cumprir a Lei n.º 64/78, de 6 de Outubro8, onde se consagra a proibição de organizações que perfilhem ideologias de matriz fascista. A letra da lei existe mas falta a sua aplicação. Contudo, não basta agir no plano jurídico: é preciso cultivar uma verdadeira cultura cívica, capaz de enfrentar a propaganda de ódio e travar a desinformação que prolifera, de forma viral, nas redes sociais. Para isso, é crucial  criar espaços de debate alargado, envolvendo os diversos sectores da sociedade civil e da representação política. A extrema-direita não pode continuar a ser tratada como um fenómeno lateral ou episódico — ela é hoje um problema grave, real e presente. 

Uma das frentes prioritárias deve passar pela reflexão crítica sobre o modo como os mais jovens consomem os conteúdos digitais. Fará sentido, como se propõe em França, proibir o acesso às redes sociais a menores de 15 anos? Ou, em alternativa, não deveríamos antes investir em campanhas de literacia digital e de sensibilização, aproveitando, por exemplo, o potencial — tantas vezes polémico — da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento? Criar programas didáticos que promovam uma cidadania digital informada, crítica e responsável entre os mais novos poderá ser uma resposta mais eficaz e duradoura. 

Além disso, o combate à extrema-direita e à cultura de ódio não pode continuar a ser uma bandeira exclusiva da esquerda, sobretudo quando esta é hoje minoritária no xadrez político nacional. Em tempos de incerteza e de desordem social, exige-se coragem de todos os atores políticos do campo democrático. O momento é de definição. Ou se age com firmeza e visão, ou arriscamo-nos a repetir a História — não como tragédia longínqua, mas como presente desfeito.

Se a justiça hesita, se o poder político se omite e se as redes sociais amplificam a toxicidade, o que resta da democracia senão o risco de se tornar apenas uma fachada? A questão não é apenas de segurança — é, sobretudo, de valores. E esses, quando corroídos em silêncio, têm o péssimo hábito de desaparecer sem darmos por isso. 

  1. https://cnnportugal.iol.pt/aderito-lopes/teatro-a-barraca/extrema-direita-portuguesa-juntou-se-em-restaurante-no-dia-da-raca-minutos-depois-um-ator-foi-violentamente-agredido/20250611/6849cc64d34e3f0bae9f479b ↩︎
  2. https://www.publico.pt/2025/06/11/sociedade/noticia/menos-autores-ataque-actores-barraca-envolvido-morte-alcindo-monteiro-2136319 ↩︎
  3. https://www.dn.pt/sociedade/agress%C3%A3o-a-ator-de-a-barraca-por-grupo-de-extrema-direita-leva-a-cancelamento-de-pe%C3%A7a ↩︎
  4. https://www.rtp.pt/noticias/pais/manifestacao-da-extrema-direita-detido-ex-juiz-fonseca-e-castro_v1650312 ↩︎
  5. https://expresso.pt/internacional/reino-unido/2024-08-04-redes-sociais-como-a-x-estao-a-alimentar-o-crescimento-do-extremismo-lideres-de-extrema-direita-fomentam-desinformacao-online-03b10ab9 ↩︎
  6. https://www.publico.pt/2025/05/29/politica/noticia/desinformacao-aumenta-portugal-chega-partido-contribui-2134783 ↩︎
  7. https://expresso.pt/sociedade/seguranca/2025-06-11-ataque-a-atores-tera-sido-organizado-por-grupo-neonazi-apagado-do-rasi-dois-suspeitos-foram-condenados-por-mortes-racistas-nos-anos-90-bf86765d ↩︎
  8. https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/lei/64-1978-328586 ↩︎

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Francisco Duarte Barbosa, natural da Madeira, nasceu a 18 de março de 2004. Licenciado em História na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

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