No passado, vários impérios ergueram-se à custa da exploração de territórios e populações. Mediante imposições militares, económicas e culturais, estabeleceram um sistema de domínio que perdurou e cujas cicatrizes ainda moldam o mapa global. Hoje, no entanto, essa lógica colonial parece ter encontrado uma nova forma de expressão: o colonialismo digital.
Esta nova forma de subjugação não se baseia na ocupação territorial nem no uso de armas, mas sim no controlo da informação, das infraestruturas tecnológicas e, acima de tudo, dos dados. No tempo em que vivemos, os dados tornaram-se um dos recursos mais valiosos, comparável ao ouro, ao petróleo ou até mesmo ao açúcar e às especiarias em séculos anteriores. As redes sociais, motores de busca e de inteligência artificial, plataformas de comércio eletrónico e dispositivos inteligentes, como smartphones, tendem a recolher diariamente quantidades massivas de informação pessoal, comportamental e social. Estes dados são analisados, trocados e comercializados, alimentando algoritmos que moldam desde os hábitos de consumo até às percepções políticas dos utilizadores. Podemos nem sempre nos aperceber, mas tudo isto é feito, na maioria das vezes, por um pequeno grupo de gigantes tecnológicos sediados em países como os Estados Unidos e a China.
O termo “colonialismo digital” descreve precisamente esta realidade. Uma nova forma de relação desigual na qual as grandes empresas tecnológicas se comportam como potências coloniais modernas. Desta forma, tendem a controlar as infraestruturas digitais globais, impondo os seus modelos de negócio e ambições, absorvendo todo o valor económico de populações inteiras, sem lhes dar verdadeiro retorno, moldando, consequentemente, as normas culturais, sociais e até linguísticas que regulam o comportamento online. Os países que não possuem infraestruturas tecnológicas próprias ou legislação eficaz e definida tornam-se presas fáceis e profundamente dependentes destas corporações globais. Esta relação de dependência ultrapassa o lado económico e técnico, entrando também no reino da política. Afinal, muitos são os governos que não têm acesso pleno aos dados gerados pelos seus próprios cidadãos e que se encontram sem capacidade para regular eficazmente as atividades das plataformas que operam dentro das suas fronteiras.
Seria impossível abordar a temática de colonialismo digital e não falar da “nuvem digital”, porque, ao contrário do que o nome sugere, a “nuvem” não é uma entidade etérea, neutra ou sequer democrática. Basta pensar que os servidores que armazenam os nossos dados estão localizados em países específicos, sujeitos a jurisdições específicas. Isto significa que os dados dos cidadãos de um determinado país podem estar fisicamente guardados noutro canto do globo, podendo ser acedidos por entidades estrangeiras, seja legalmente ou, inúmeras vezes, de forma ilegal. Em última análise, isto compromete a segurança e a própria soberania digital, um conceito cada vez mais central no debate contemporâneo sobre segurança, privacidade e liberdades no espaço online. A nuvem pode parecer leve, mas carrega o peso de um novo colonialismo invisível, silencioso e global.
Engana-se quem achar que o colonialismo digital se manifesta exclusivamente na extração e armazenamento de dados. Afinal, tal como o colonialismo “clássico”, as versões digitais também têm a capacidade de destruir culturas locais e impor valores diferenciados às populações colonizadas, por meio de uma homogeneização. Podemos usar o exemplo da hegemonia cultural online de teor anglófono, claramente baseado em valores ocidentais, e profundamente moldado por interesses comerciais, permitindo aos algoritmos reproduzir ideias e preconceitos culturais e económicos, onde os modelos de interação social promovidos pelas redes reforçam uma lógica individualista e de maior teor consumista.
A questão que se deve colocar é se será possível resistir a esta nova forma de domínio. A resposta tende a ser complexa, mas não totalmente negativa. Atualmente, inúmeros países e movimentos sociais têm procurado desenvolver vias alternativas. Destacam-se iniciativas de soberania digital que incluem a criação de infraestruturas nacionais para alojamento de dados, maior investimento em redes descentralizadas, promoção do uso de software livre e de código aberto, e a adoção de legislações rigorosas de proteção de dados, como o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados da União Europeia. É importante referir que existe também um movimento crescente de educadores, programadores e ativistas que questiona o modelo atual de vigilância e que luta por um mundo digital mais justo, transparente e descentralizado.
Contudo, e finalizando, descolonizar o digital não é apenas uma questão técnica ou legislativa. É, acima de tudo, um desafio político, cultural e ético. Exige pensamento crítico, participação cívica e a consciência de que o poder no mundo digital, por mais invisível que seja, é tão real e eficaz quanto o das antigas potências coloniais. Tal como os impérios do passado não caíram sem resistência, também este novo império dos dados só será desmontado se conseguirmos imaginar e construir alternativas. Numa era cada vez mais mediada por ecrãs, redes e algoritmos, é urgente que a soberania digital seja reconhecida como um direito fundamental e não como um luxo geopolítico reservado a somente alguns.
Se não lutarmos pelo controlo dos nossos dados, seremos reduzidos a matéria-prima de um império invisível que nos habita antes mesmo de sabermos que nele existimos.
Referências:
Couldry, N., & Mejias, U. A. (2019). The costs of connection: How data is colonizing human life and appropriating it for capitalism. Stanford University Press.
Zuboff, S. (2019). The age of surveillance capitalism: The fight for a human future at the new frontier of power. PublicAffairs.
Ebeling, M. (2021). Digital colonialism: The evolution of American empire. Polity Press.
Birhane, A. (2019). Algorithmic colonization of Africa. Real Life Magazine. Disponível em: https://reallifemag.com/algorithmic-colonization-of-africa/
Global Voices – Advox Project. (2023). Digital authoritarianism: How technology is being used to undermine rights across the globe. Disponível em: https://advox.globalvoices.org