Olhar nos olhos dos animais

"Tem sido consistente a necessidade de mudar o velho paradigma cultural antropocêntrico, que se desenvolve em função da supremacia humana, substituindo-o por um criativo e espiritual paradigma holístico, onde todos os seres e ecossistemas interdependentes são igualmente priorizados."

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Estava no segundo ciclo do ensino básico quando contactei, pela primeira vez, por via da minha professora de Ciências Naturais, com a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, tendo ficado impactada com a força e verdade dos seus propósitos. A Declaração Universal dos Direitos dos Animais foi assinada em 1978, pela UNESCO e pela ONU, tendo sido uma das alavancas essenciais para reconhecer, entre os nossos parceiros de viagem planetária, pressupostos morais e éticos de legitimidade e dignidade existenciais semelhantes aos direitos humanos (declaração de 1948).

Este debate continua a ser atual e urgente entre as várias áreas disciplinares, especialidades de investigação e fontes diversas de sensibilidade e criação artística, tanto para a sobrevivência futura dos humanos como para a sua vocação humanista e civilizacional. Tem sido consistente a necessidade de mudar o velho paradigma cultural antropocêntrico, que se desenvolve em função da supremacia humana, substituindo-o por um criativo e espiritual paradigma holístico, onde todos os seres e ecossistemas interdependentes são igualmente priorizados.

Se as primeiras criaturas no nosso planeta surgiram há mais de 540 milhões de anos (talvez mais, há 890 milhões de anos nos oceanos, com as esponjas antigas), os primeiros hominídeos, nossos ancestrais primatas, calcula-se que surgiram há cerca de 2,5 milhões de anos. O Homo sapiens, ou o humano moderno, eventualmente há 200 mil anos. Somos todos terráqueos, pertencemos todos e todas na mesma proporção de legitimidade e direito à mesma biosfera planetária. Assim deveria ser também no acesso aos recursos, espaços e ciclos temporais (tão limitados para tantos), numa correspondência profunda e delicada, em que a rutura ou destabilização de uns, por mais pequenos que sejam, pressupõem a destruição e inviabilidade de outros.

O conceito de “animais racionais” (nós) e “animais irracionais” (os outros), está desatualizado. A cada dia e a cada nova pesquisa, as ciências modernas descobrem e comprovam que os parâmetros de racionalidade, cognição, inteligência, senciência, linguagem, sociabilidade, são manifestações possíveis e quantificáveis em diferentes graus na maioria das espécies. Como refere o ecologista Carl Safina: o que diferencia essencialmente os humanos nas suas particularidades ou habilidades em relação aos outros animais é o grau acentuado ou extremado com que fazemos as coisas. Podemos ser os mais criativos, mas também somos os mais destrutivos.1 Podemos ser os mais compassivos, mas também podemos ser os mais cruéis. O conceito correto é designar animais humanos e animais não humanos. Ambos, não são nem objetificáveis, nem meras máquinas automatizadas isentas de alma. Muitas vezes, é a “voz” cósmica e originária, também orgânica, que, ainda que indecifrável, nos supera e guia perante o impasse e inverdade dos entendimentos humanos.

Aprendemos muito com os animais não humanos: aprendemos com a empatia, autenticidade e pureza dos animais. Designadamente, quando visualizamos vídeos de animais (a maioria domésticos) a interagir, a não excluir ou discriminar e a relacionar-se de igual forma com pessoas velhas, novas, doentes, incapacitadas, pobres ou de etnias diferentes. Aprendemos que tanto há um tempo para se comportar como uma cria, num estágio infantil, como há um tempo para se comportar como um espécime adulto, competente. Aprendemos que há cooperação social, mas que cada indivíduo deve também fazer a sua parte. Aprendemos com o pragmatismo do que tem de ser feito. Aprendemos a afastar-nos do que nos é doloroso. Aprendemos sobre o tempo necessário para se estar em silêncio. Aprendemos a desejar a liberdade, (comprova-se que as orcas já mataram pessoas em cativeiro, em aquários, mas nunca o fizeram em liberdade).

Especismo é o tratamento desigual e discriminatório que fazemos entre nós e as outras espécies, ou a diferenciação hierarquizada entre diferentes espécies de animais não humanos; sendo porque simpatizamos mais com a aparência de alguns, porque se parecem mais connosco, porque são enormes e nos intimidam ou porque nos são úteis. Esta diferenciação de superioridade e inferioridade é oca e arbitrária nas suas intenções. O valor inflacionado que atribuímos ao ser humano em detrimento dos outros seres vivos é uma fantasia antropocêntrica egoísta e pouco sábia. Para a Natureza, a macroestrutura e entidade que gera e alimenta todos os ecossistemas, o valor de um inseto ou de um réptil é o mesmo que o valor de uma ave, de uma baleia ou de um humano. O facto de que a Natureza é absoluta e bem maior e mais sapiente do que o humano, sendo que por ele deve ser ouvida e honrada, deveria ser dos poucos dogmas a respeitar e incorporar nas nossas decisões.

A maioria de nós aprendeu e informou-se que os animais também sentem, têm emoções e reações ou respostas diferentes aos acontecimentos, tal como nós. Precisam da interação e crescimento com os seus. A senciência é a capacidade de um ser vivo sentir, de ser afetado positiva ou negativamente, de armazenar experiências através dos seus sentidos e emoções por possuírem um sistema nervoso central (e periférico, com indicadores fisiológicos). O seu órgão principal, na maioria das vezes o cérebro, recebe, interpreta e assimila os estímulos com resultados na dor, no medo, no stress, na frustração, no prazer, na surpresa, na satisfação ou na pertença. O estudo dos comportamentos, linguagens e reações nos animais não humanos é feita pela área científica da Etologia, que muito tem ensinado à Antropologia e Psiquiatria! A senciência justifica o posicionamento ético de bem-estar, liberdade e dignidade para os mamíferos, aves, invertebrados, peixes, e outras criaturas. Assim, não é nada compreensível, que nas nossas comunidades ainda se normalize: a venda de animais como se fossem coisas; as aves em gaiolas ou em pedestais como bibelôs; os peixes em aquários; os animais em varandas ou espaços pequenos; o abandono dos animais de companhia; os crustáceos e moluscos vivos expostos nas marisqueiras; a utilização de animais como meios de transporte, para tarefas, para eventos, circos ou “espetáculos”. É inadmissível mesmo em Portugal, ainda ser permitido eventos tauromáquicos como as touradas. Nenhum ritual ou tradição deve ser perpetuado quando o que prevalece é a subjugação, a violência gratuita e o sofrimento. É inconcebível como continuamos, em todos os países, uma ordem económica de carnificina, a olhar para os animais como mercadoria, num excessivo consumo inconsciente, monopolizado pelas indústrias de produção intensiva e pesca desenfreada tão desumanas e bárbaras. Tão criminoso quanto fecharmos os olhos!

Na perspetiva da linguagem que usamos, também não é o mais correto compararmos perversões, crueldades ou atos hediondos da nossa espécie ao comportamento dos outros animais. A noção de mal, como construção humana, moral e cultural só existe em nós. Nós é que temos o livre arbítrio e a consciência de limites, tanto do aceitável como do inaceitável. Como disse Albert Einstein: “A humanidade inventou a bomba atómica, mas nenhum rato inventaria uma ratoeira”. Também nestas matérias, é importante visualizar documentários como “Earthlings” (Terráqueos) de 2005, disponível no Youtube, ou fazer a leitura de filósofos como Peter Singer, Tom Regan e Garry L. Francione ou de um dos nossos maiores pensadores portugueses, Agostinho da Silva.

Da Declaração Universal dos Direitos dos Animais, sublinho entre os catorze artigos que a definem, os seguintes: “Artigo 2º, alínea b) O homem, enquanto espécie animal, não pode atribuir-se o direito de exterminar os outros animais ou de os explorar, violando esse direito. Tem a obrigação de empregar os seus conhecimentos ao serviço dos animais; Artigo 3º, alínea a) Nenhum animal será submetido a maus-tratos nem a atos cruéis. Alínea b) Se a morte de um animal é necessária, esta deve ser instantânea, indolor e não geradora de angústia; Artigo 4º, alínea a) Todo o animal pertencente a uma espécie selvagem tem o direito de viver livre no seu próprio ambiente natural, terrestre, aéreo ou aquático, e a reproduzir-se. Alínea b) Toda a privação de liberdade, incluindo aquela que tenha fins educativos, é contrária a este direito; Artigo 8º, alínea a) A experimentação animal que implique um sofrimento físico e psicológico é incompatível com os direitos do animal, quer se trate de experimentações médicas, científicas, comerciais ou qualquer outra forma de experimentação. Alínea b) As técnicas experimentais alternativas devem ser utilizadas e desenvolvidas; Artigo 9º, alínea a) Quando um animal é criado para a alimentação humana, deve ser nutrido, instalado e transportado, assim como sacrificado sem que desses atos resulte para ele motivo de ansiedade ou de dor; Artigo 14º, alínea b) Os direitos dos animais devem ser defendidos pela Lei, assim como o são os direitos humanos.”2

Desta forma, haja tempo e espaço como no início, para todas as almas. Haja tempo para olharmos nos olhos de um ser que também nos questiona e se espanta, pois, o dever de cada um, apesar da sua diferença, é o de cumprir-se em harmonia.


Referências:

  1. Safina, C. (2016). “Para Lá das Palavras. O que Pensam e Sentem os Animais” (Relógio D’Água; V. Gato, Trad.) ↩︎
  2. Declaração dos Direitos dos Animais, proclamada pela UNESCO, a 15 de outubro de 1978 ↩︎

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Laíz Vieira nasceu na Venezuela em 1971, devido à emigração dos pais gauleses. De retorno à Ilha na infância, viveu muitos anos na cidade de Machico, onde as principais revelações se fizeram.

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