“Mais de dois milénios depois, e com séculos de absolutismos e impérios pelo meio, a democracia moderna continua a ser uma experiência recente — e profundamente desigual.”

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Dizem que a democracia nasceu na Grécia. E é verdade. Mas esquecem-se de dizer que, nessa altura, era só para homens, ricos e, de preferência, sem escravos — o que, convenhamos, não deixa muita gente de fora… exceto quase toda a gente.

Mais de dois milénios depois, e com séculos de absolutismos e impérios pelo meio, a democracia moderna continua a ser uma experiência recente — e profundamente desigual. Segundo o mais recente Democracy Index 2024, publicado pela Economist Intelligence Unit (EIU), o estado da democracia no mundo atravessa um período de declínio acentuado. O índice, que avalia 167 países e territórios com base em cinco critérios — processo eleitoral e pluralismo, funcionamento do governo, participação política, cultura política e liberdades civis —, classifica os regimes em quatro categorias: democracias plenas, democracias imperfeitas, regimes híbridos e regimes autoritários.

Os dados não deixam margem para grande otimismo: apenas 25 países são considerados democracias plenas. Em contrapartida, 60 países vivem sob regimes autoritários, abrangendo cerca de 39,2% da população mundial. A média global caiu para 5,17 em 10 — o valor mais baixo desde o início da série, em 2006. A democracia, para grande parte do planeta, continua a ser uma promessa adiada.

Portugal, apesar de tudo, destaca-se positivamente neste cenário sombrio. Classificado como democracia plena, ocupa agora o 23.º lugar no ranking global, com uma pontuação de 8,08. Subiu oito posições face ao ano anterior, graças a melhorias na cultura política e na participação cívica — pilares essenciais de qualquer democracia funcional. O país obteve 9,58 em processo eleitoral e pluralismo, 8,82 em liberdades civis e 8,75 em cultura política. Já o funcionamento do governo e a participação política revelam maior fragilidade, com 7,14 e 6,11 pontos, respetivamente.

Este percurso português contrasta com o dos Estados Unidos da América, frequentemente apontados como bastião da democracia ocidental, mas que permanecem na categoria de democracia imperfeita, com uma pontuação de 7,85. A polarização extrema, a desconfiança nas instituições e os bloqueios sistemáticos ao funcionamento do governo explicam, em parte, essa posição. Do lado oposto, países como Noruega, Nova Zelândia e Islândia continuam a liderar o ranking mundial, com pontuações próximas do ideal.

O relatório sublinha, em termos globais, a degradação da qualidade democrática, alimentada por fenómenos como a guerra, a ascensão do populismo, a desinformação digital e a erosão progressiva das liberdades civis. Ainda assim, há sinais de resiliência em algumas regiões, nomeadamente na Europa Ocidental, onde países como Portugal e Espanha mostram melhorias visíveis.

O caso português é, aliás, um exemplo interessante das ambiguidades históricas entre religião e democracia. A relação sempre foi tensa, como aqueles casamentos antigos arranjados pela conveniência das famílias: vivem juntos, têm filhos — às vezes partidos políticos —, mas raramente se beijam em público. Nos Estados Unidos, onde o Estado é dito laico, os presidentes juram sobre a Bíblia. No Irão, onde a religião é o Estado, as eleições só acontecem após a aprovação clerical das listas. Uma democracia com catecismo, em qualquer dos casos.

Portugal, como de costume, tem uma história sui generis. Durante séculos, altar e trono marcharam lado a lado: o padre dizia o que o rei mandava dizer, e o rei fazia o que o padre abençoava. A Primeira República tentou arrancar a cruz do peito da pátria, mas a cruz ficou. E quando Salazar chegou, devolveu-lhe o lugar de destaque, pendurando crucifixos nas salas de aula. Deus, Pátria e Família — a Santíssima Trindade do Estado Novo.

Hoje, apesar de uma Constituição que consagra a laicidade do Estado, persistem sinais contraditórios: crucifixos em tribunais, ensino da moral católica nas escolas públicas e autarquias que financiam procissões. A laicidade em Portugal é como a liberdade de expressão, ou o segredo de justiça: todos os defendem, mas poucos os compreendem verdadeiramente.

E, no entanto, o que há de mais religioso hoje é a política partidária. Talvez por isso os partidos se chamem partidos — como quem diz que já vêm partidos de alguma coisa. Os líderes sobem a palanques como quem sobe ao púlpito. Os comícios soam a sermões. Há bandeiras, símbolos, fiéis. E há sempre uma promessa de salvação: o fim da crise, o regresso da dignidade, o renascimento da pátria — ou pelo menos da linha do Metro (ou MetroBus).

O proselitismo político é, afinal, a arte de convencer sem admitir que se está a tentar convencer. A missão de converter os descrentes, os apáticos e, sobretudo, os cansados. Porque são esses — os exaustos — que mais facilmente se deixam tocar por uma nova fé. Troca-se o crucifixo pelo crachá, o terço pelo boletim de voto, e a missa passa a ser ao domingo, mas no canal noticioso da preferência.

A política tem uma vantagem sobre a religião: pode ser laica, ateia, progressista ou até profundamente cínica. Pode falar em liberdade enquanto constrói muros, pode proclamar direitos humanos enquanto fecha os olhos a abusos, pode jurar transparência com os bolsos cheios de opacidades. Há aqui um jogo de luzes e sombras, onde o que mais brilha nem sempre é o mais verdadeiro.

Hoje, o proselitismo não se faz apenas com palavras. Faz-se com algoritmos, com perfis digitais, com campanhas dirigidas e fake news embrulhadas em indignação. O discurso político já não é tanto racional como emocional. Não importa o argumento — importa o impacto. Como num culto evangélico, o dogma dá lugar à catarse.

Em Portugal, esse proselitismo é mais suave. Mais fado do que fanatismo. Sugere, mas não impõe. Convida, mas não obriga. Ainda somos um país onde o voto é, muitas vezes, mais expressão de cansaço do que de convicção. E, mesmo assim, o proselitismo persiste. Comícios com cheiro a sardinha. Frases prontas para cartazes: “Mais futuro”, “Agora é que é”, “Portugal em boas mãos”. Como se a salvação viesse, sem falhas, na legislatura seguinte.

Mas talvez seja esse fervor missionário o que mantém a democracia viva. Um país onde ninguém tenta convencer ninguém é um país resignado. E a resignação é o prelúdio da tirania. Num mundo onde apenas 6,6% da população vive em democracias plenas e quase 40% sob regimes autoritários, torna-se claro que a democracia, com pouco mais de dois séculos de história moderna, não é a tendência natural da humanidade — é uma construção rara, recente e constantemente ameaçada.

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Psicólogo no CRPG-Delegação de Coimbra e de Hospitais Privados (Área Clínica / Neuropsicológica).

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