Acordas um dia revoltado, porque há uma mercearia indiana na tua rua. Revoltado não porque ela te faz mal, mas porque está ali. Existe; isso basta. É aí que tudo começa: o desconforto é a mera presença do outro. É o início do discurso que camufla a xenofobia com indumentária patriótica, tentanto transformar num problema social o que não passa de um exercício banal de convivência num mundo plural.
Começam a ouvir-se palavras como “invasão”, um termo nada inocente. Mas, no contexto da migração económica, é simplesmente falso. Não há “invasão” quando as pessoas vêm responder a uma necessidade interna de mão de obra do país de chegada. Não vêm forçar portas. Vêm porque alguém as abriu e porque há vagas por preencher. Porque o sistema económico, que muitos dos que gritam “invasão” defendem com unhas e dentes, precisa de corpos disponíveis para trabalhar, idealmente, a baixo custo e sem quaisquer garantias laborais. A imigração não é um movimento violento de conquista. É um movimento social inevitável num mundo desigual. Em muitos casos, desejado por quem precisa desses trabalhadores e aproveita para os explorar.
É importante dizer claramente: chamar “invasão” a este fenómeno é alinhar, consciente ou não, com a cartilha da extrema-direita. Com uma narrativa falsa e perigosa que procura desumanizar, assustar, simplificar. Uma narrativa que nunca se preocupa com soluções, apenas com inimigos imaginários.
Depois, aparece o velho fantasma da perda de identidade. Diz-se que “estamos a perder a nossa cultura”, que “a nossa língua está em risco”. Como se um migrante que fala uma língua diferente tivesse esse poder místico de apagar séculos de história cultural só por montar um negócio no bairro. Isto não é só ignorância, é má-fé. A cultura não é uma peça de museu. É um organismo vivo, em constante transformação, feito de encontros, trocas, influências. E não, os mais pobres e vulneráveis não são os grandes arquitetos dessas mudanças. A perda de diversidade linguística ou cultural acontece quando há uma imposição de poder, quer seja por parte do Estado ou de agentes culturais dominantes. As famílias estrangeiras que vêm tentar melhorar a sua vida não têm o poder (nem a intenção) de apagar a cultura do país de chegada. O inglês, por exemplo, não entrou em Portugal pelas mãos dos migrantes. Entrou porque o Estado português assim o decidiu, porque o sistema de ensino o promoveu, porque o mercado o exigiu, porque a internet o acelerou. Mas é mais fácil apontar o dedo à criança indiana que não fala um português perfeito do que ao Ministério da Educação, ou às políticas culturais que tomámos como país nas últimas décadas.
E sim, este discurso é racista. Não vale a pena andar às voltas. É racista porque não se revolta com o estrangeiro loiro, de olhos azuis, fluente em inglês, geralmente privilegiado. Revolta-se com o tom de pele (quanto mais escuro, maior a revolta), com a religião, com a comida diferente, com o sotaque marcado. Revolta-se com a existência do outro não por ser uma ameaça a alguma coisa concreta, mas por perturbar uma ideia fictícia de identidade nacional homogénea que nunca existiu. Quando te incomoda a mercearia indiana, mas não a cadeia multinacional que paga salários miseráveis e foge ao fisco, é racismo. Quando te assusta o vizinho que mal fala a tua língua, mas não a empresa que explora e precariza toda a tua geração, é racismo.
E o mais absurdo? Não há crise. Não há aumento de desemprego por causa da imigração. A segurança social não está em colapso por causa dos migrantes — pelo contrário, beneficia muito com a sua contribuição. O SNS não está a arder por culpa dos imigrantes: a maior parte deles nem sequer consegue aceder aos cuidados de saúde para os quais descontam a partir do momento em que chegam ao país. O crescimento económico, ao contrário do que se grita nas caixas de comentários das redes sociais, não desaparece com a imigração: é frequentemente sustentado por ela. Os problemas reais — habitação, sobrecarga de serviços públicos, abandono de certas regiões — são estruturais e afetam toda a gente. São o resultado de políticas públicas insuficientes, da ausência de investimento, de uma economia desequilibrada. A resposta não pode ser “menos imigrantes”. Tem de ser “mais direitos”, “melhor redistribuição”, “melhores infraestruturas”, “mais habitação pública”.
Porque, no fim do dia, os maiores problemas na imigração não são causados pelos migrantes. São sofridos por eles. São eles que são discriminados, explorados, marginalizados. São eles que vivem em situação de precariedade e exclusão, apesar de contribuírem ativamente para o país. São vítimas de políticas incoerentes, burocracias kafkianas e discursos de ódio. Mesmo assim, vêm. Mesmo assim, arriscam. Porque, para muitos, isso ainda é melhor do que o que tinham antes: é a esperança de um futuro melhor.
Talvez esteja mesmo na altura de repensarmos o conceito de fronteira. De deixarmos de repetir dogmas e começarmos a olhar para os dados. Sabemos hoje que fechar fronteiras não impede a migração; pelo contrário, muitas vezes, fixa-a. Quando antes havia migração sazonal, agora há imigração definitiva e familiar. E temos o exemplo europeu: fronteiras abertas, sim. Mas êxodos? Não. Porque as pessoas, na sua maioria, não querem sair de onde pertencem. Só o fazem quando não têm escolha.
A mercearia indiana da minha rua não é o fim da nossa cultura. É apenas mais uma loja, mais uma família, mais um contributo. O que destrói uma sociedade não é a diversidade, é o ódio à diferença. Esse, sim, devíamos temer. Está bem mais próximo de casa do que julgamos.