Egoísmo e empatia digladiam-se à luz das velas

28 de abril de 2025 foi sobretudo um dia contraditório, um dia de paladar agridoce. É curioso que o melhor e o pior se fundam nesta concha de retalhos à qual chamamos sociedade.

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11h30 da manhã. Começa. Se não houver hábito de almoçar a horas que certamente causariam comoção entre os numerosos membros do credo do meio-dia, o almoço sofrerá alguns desvios de percurso. Se é constituído pelo remanescente do jantar dominical, das duas uma, ou é salada, ou o ato de comer a frio trará algum incómodo. Contudo, uma merenda gelada contrai um sabor magnífico para quem se apercebe que, em princípio, não dará continuidade à jornada laboral, que custa sempre mais no primeiro dia da semana. Foi o meu caso. Trabalho em contabilidade, hoje uma profissão totalmente dependente das tecnologias de informação. Ainda sugeri recuperar o ábaco e as partidas de Luca Pacioli, mas o servidor e a base de dados torceram o nariz.

Não obstante, enquanto o desmame da televisão, da internet e das redes sociais desacelerou o ritmo frenético do quotidiano de uma parte da população, que se viu obrigada a acertar contas com o tédio – ou com o livro de introdução à numismática cuja leitura se adiou até onde foi possível –, trabalhadores de vários serviços absolutamente indispensáveis viram-se a braços com uma afluência quimérica de clientes. Operadores de retalho com os quais me deparei confessaram que, quase desde o início do turno, não faziam ideia do que se passava no mundo à sua volta. Se caía, se levantava, se explodia, não sabiam. Havia uma maré ascendente de pessoas para atender e auxiliar no talho, na charcutaria, na peixaria, nas caixas e na utilização das máquinas de self-service, que, ironicamente, exigem sempre o auxílio de terceiros. E a multidão nem sempre exercia o direito ao consumo com ponderação. Pelas 18 horas, quando me dirigi ao supermercado mais próximo, deparei-me com um episódio crítico de açambarcamento. Quem lá tivesse passado o dia, pensaria que Portugal vivia um momento singular de escassez de víveres, causado por um qualquer bloqueio económico e militar. As prateleiras de enlatados desertificaram e nas de pilhas só se encontravam as mais caras. Embora o governo tivesse alertado para a probabilidade de recuperação da eletricidade nas próximas 24 horas, houve quem considerasse que iria gastar o equivalente a seis meses de papel higiénico numa tarde.

Sempre que me dirigia a uma secção, notava que me fitavam com desconfiança. Adiantavam o passo se se apercebessem que procurava a mesma secção que eles, não fosse eu impedi-los de adquirir dois anos de bolacha maria. Pior ocorreu na padaria. Àquela hora, pão de forma apenas existia no campo das ideias. Formou-se então, de modo orgânico, uma fila para o acesso ao biju, o típico pão branco deveras apreciado pelos portugueses. Apesar de ter acabado de sair uma fornada de bola de centeio, cada cliente acumulava tanto biju quanto possível, mesmo sabendo que não o iria conseguir congelar. Chegada a minha vez, acabei por me ver obrigado a recorrer ao fermentado escuro, que admito que até prefiro.

Nestes episódios, temo que uma cultura e uma vivência desproporcionalmente centradas naquilo que Lécio Dias caracteriza como individualismo hedonista, quando misturadas com o desespero situado na incerteza, desaguam em condutas egoístas e derivas consumistas que não abonam a favor de uma atuação comunitária concertada. Por outro lado, verifica-se também um desabrochar de tendências sociais que nos deixa esperançosos. Dependente da rádio para compreender o que estava a ocorrer, escutei atentamente a frequência da Antena 1, que de vez em quando relatava algumas práticas extremamente positivas. A título de exemplo, uma repórter contava que no Porto, na ausência de sinais de trânsito, os condutores revelavam um respeito inaudito pelas regras de cedência de passagem nos cruzamentos. Ainda na cidade invicta, noticiava-se que uma senhora tentava entregar água a polícias que se encontravam nas imediações. Já nas ruas de Braga que atravessei, deparei-me com um horizonte preenchido por amigos que se congregavam em piqueniques, pais que jogavam à bola com os filhos, desconhecidos que mantinham conversas prolongadas, talvez tentando descortinar na experiência do outro o conforto de não estarem sozinhos nas suas frustrações analógicas. 

Os episódios de quebra da normalidade costumam ensejar o confronto entre duas rotas de ação: uma reveladora de ímpetos inconsequentes e egocêntricos, caso da infame corrida aos supermercados no amanhecer da crise da pandemia de COVID-19; outra evidencia a nossa capacidade de cooperação e apreço pelo próximo, destacada por historiadores como Yuval Noah Harari. Quem não se recorda de quem, em pleno confinamento, se organizou pelo mundo fora para distribuir comida e outros bens de primeira necessidade aos mais carenciados? 

28 de abril de 2025 foi sobretudo um dia contraditório, um dia de paladar agridoce. É curioso que o melhor e o pior se fundam nesta concha de retalhos à qual chamamos sociedade. Tal como em outras ocasiões, egoísmo e empatia digladiaram-se vigorosa e persistentemente – mas desta vez à luz das velas.

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Mestre em Ciência Política pela Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho. Dono de um canal de Ciência Política com mais de 10.000 subscritores no Youtube. Autor do podcast Pura Ideologia e do livro Monólogos a Dois.

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