Nasci num país livre, mas todos os dias me pergunto se essa liberdade está mesmo garantida. Em 2025 celebram-se 51 anos desde o 25 de Abril, e não consigo fazê-lo com leveza. Aquilo que foi uma conquista coletiva começa a parecer, para muitos, apenas um símbolo decorativo. Olho para o país onde cresci e vejo uma democracia esgotada, a perder fôlego no meio da apatia, da desigualdade e da ascensão de discursos autoritários. Crescemos a ouvir que vivíamos numa democracia consolidada, como se isso fosse um ponto de chegada, imune a retrocessos. Mas a história não acabou em 1974, e os sinais de alarme estão por todo o lado.
A liberdade, que foi conquistada com coragem e risco, está a ser corroída por dentro. Não por um golpe militar, mas por um processo lento e disfarçado de normalidade. Essa corrosão manifesta-se na normalização da extrema-direita, no crescimento da indiferença e na exclusão social e económica de uma geração inteira. A democracia não desaparece de repente. Enfraquece-se, pouco a pouco, quando deixamos de a alimentar com participação e responsabilidade. E a verdade é que, se quem acredita na justiça social, na igualdade e na solidariedade não a defender, não haverá quem o faça.
Em Portugal, a extrema-direita já não é um fenómeno marginal. O Chega, partido que há poucos anos era visto como um projeto excêntrico, passou a ser a terceira força política no Parlamento, com 50 deputados eleitos em 2024 após ter recebido alcançado quase 1,170 milhões de votos. O seu discurso populista, xenófobo e punitivo encontrou eco num país cansado de promessas traídas, de desigualdades persistentes e de uma direita tradicional incapaz de dar respostas a quem mais precisa. André Ventura constrói inimigos internos, aponta o dedo a minorias e alimenta-se da indignação para destruir o consenso democrático. Não quer reformar o sistema, quer submetê-lo a uma lógica de conflito, exclusão e medo. E é dentro do Parlamento nascido do 25 de Abril que essa ameaça encontra palco e protagonismo.
A crise da habitação tornou-se um dos reflexos mais visíveis da desigualdade. Lisboa é atualmente a terceira cidade europeia mais inacessível para arrendar casa, atrás apenas de Budapeste e Praga, de acordo com o “Indicador Bradshaw” publicado pela The Economist. Em 2024, a renda média de um T1 em Lisboa rondava os 2.000 euros mensais, tornando a habitação inacessível para grande parte da população jovem. Este cenário não é inevitável. Resulta de decisões políticas concretas. Durante anos, o Estado abdicou da sua responsabilidade de garantir uma política pública de habitação robusta. O parque habitacional continua diminuto, enquanto centenas de milhares de casas estão devolutas, entregues à especulação. Isto não é apenas uma crise habitacional. É o espelho de um modelo económico que falhou às gerações mais novas. E a resposta não pode ser tímida. Exige vontade política, investimento público e coragem para enfrentar interesses instalados.
Os jovens vivem este bloqueio com intensidade. Muitos só conseguem sair de casa dos pais depois dos 30 anos. Trabalham, mas vivem sem garantias. Enfrentam precariedade, baixos salários e um discurso político que os marginaliza enquanto os responsabiliza por problemas que não criaram. Em julho de 2024, a taxa de desemprego jovem em Portugal situava-se nos 20,9%, uma das mais elevadas da União Europeia. Ainda assim, ouvimos que a juventude não quer trabalhar, não se esforça, não participa. A realidade é bem diferente: o que falta não é vontade, é quem lhes abra oportunidades, os valorize e lhes garanta um futuro com dignidade.
A sub-representação política torna o problema ainda mais evidente. Dos 230 deputados da Assembleia da República, apenas nove têm menos de 30 anos. A média de idades ronda os 49. Isso significa que a política é feita, quase exclusivamente, por quem já não sente as dificuldades de quem hoje cresce e trabalha. A renovação democrática exige mais do que rostos novos. Exige a abertura de espaços reais de decisão, onde a diversidade geracional e social tenha expressão. Só assim a democracia deixará de parecer um ritual distante e se tornará um instrumento de transformação concreta.
A desinformação tornou-se uma ameaça silenciosa, mas devastadora. As fake news circulam sem filtro, impulsionadas por algoritmos que favorecem o choque em detrimento da verdade. Cada um escolhe a sua bolha, e dentro dela tudo parece fazer sentido. A radicalização cresce, o espaço público degrada-se e a confiança coletiva desfaz-se. Neste ambiente, a extrema-direita avança com facilidade. Não basta combater as mentiras com factos. É preciso reconstruir a confiança, garantir literacia mediática e proteger o jornalismo que resiste. A liberdade conquistada em 1974 precisa, hoje, de ser defendida em novos campos de batalha.
No plano internacional, os sinais não são melhores. Viktor Orbán governa a Hungria de forma cada vez mais autocrática, levando o Parlamento Europeu a aprovar, em 2022, uma resolução que considera o país “já não uma democracia plena”. Giorgia Meloni, em Itália, lidera um governo que trouxe de volta ao poder um partido com raízes neofascistas. E Donald Trump, após um processo eleitoral marcado por desinformação e profundas divisões, regressou à presidência dos Estados Unidos em 2025. Este regresso não é apenas um reflexo da realidade americana, mas um alerta global. As democracias não são invencíveis. Podem ser capturadas, distorcidas e usadas contra si próprias. Cabe-nos aprender com isso antes que seja tarde demais.
A guerra na Ucrânia prossegue, violando o direito internacional e destruindo vidas. Segundo a ONU, mais de 12.000 civis ucranianos foram mortos desde o início da invasão russa em 2022. A solidariedade demonstrada por vários países, incluindo Portugal, deve manter-se com firmeza. A defesa da liberdade não pode ser seletiva. O mesmo se aplica ao Médio Oriente, onde a resposta de Israel ao ataque do Hamas mergulhou Gaza numa tragédia humanitária. Milhares de mortos, bairros destruídos, bloqueio à ajuda humanitária. O silêncio institucional contrasta com a mobilização das ruas. Em Lisboa, Paris, Londres, os jovens exigem um cessar-fogo, justiça para todas as vítimas e coerência democrática. Não basta proclamar valores: é preciso aplicá-los.
Por tudo isto, falar de Abril hoje é mais urgente do que nunca. Mas não basta evocá-lo. Cumprir Abril é garantir que ninguém fique para trás. É recusar a desigualdade como destino inevitável e a precariedade como norma. É reconstruir o Estado Social e afirmar que a política tem de estar ao serviço de quem vive nela. Abril foi feito por quem ousou desafiar o medo com esperança. Agora, o desafio é nosso. E não será vencido com resignação, mas com ação. Se queremos um futuro digno desse nome, temos de escrever a próxima página com a mesma coragem de quem escreveu a primeira.