Do 25, o Amor de Dois

"O passado fascista ditava as condutas de comportamento com normas sociais subjugadoras, culpabilizantes, discriminatórias, com papéis padronizados ou perfis estereotipados para meninos e meninas, rapazes e raparigas, homens e mulheres, que atingiam o domínio do privado, íntimo e pessoal."

Tempo de leitura: 8 minutos

Como a maioria dos comportamentos humanos, construções conjunturais e culturais, das leituras que possamos fazer sobre o amor romântico (Eros), no atual entendimento ocidental, após os horizontes que o 25 de Abril de 1974 abriu, a possibilidade da relação a dois, apaixonada, erotizada, abre-se como na arte e em liberdade a promessas extraordinárias de criatividade e sentido. Na história ocidental, há os que defendem os primeiros vislumbres do amor romântico na Idade Média, pelos jogos de cortejamento, idealização e reciprocidade, mas é na designada Idade Moderna e depois da Revolução Francesa que começam a ser aceites alguns casamentos por amor, além dos comuns contratos interfamiliares ou casamentos políticos e económicos. Em Portugal, no Estado Novo, predominavam os ressequidos e restritivos namoros, com seus consequentes casamentos por conveniência social, familiar e de perpetuação geracional. Para o bem, mas mais para o mal, namoros formatados e casamentos indissolúveis!

Com o início da democracia em Portugal, a paixão, o desejo e os arrebatamentos passam a ser legitimados, ou ao lado do amor, ou de forma autónoma. Porém, ainda hoje se verifica que as paixões escandalizam o normativo, assustam as convenções, destabilizam o assegurado e doutrinado. Nenhuma instituição ou regime estabelecido aceita, sem desconfiar, as paixões que libertam e questionam.

Nas outras espécies de animais, podemos testemunhar comportamentos que se assemelham aos critérios humanos do amor: o sentido de proteção, de pertença, de presença, de união, de cooperação, de cumplicidade ou identificação e também de ritualização ou jogo estético em alguns cortejamentos. Há monogamia em algumas espécies, a possibilidade de existir ou cumprir-se em par, entre coletividades maiores.

Sabemos que o Abril português – o imaginário e ideal da revolução de 25 – avança e recua no que se propôs alcançar. Naquela que continua a ser a reconstrução da relação conjugal, após o golpe militar, acredito que a grande rutura germinante aconteceu com o acesso à contraceção e à não consequência ou obrigatoriedade de procriar. Mesmo que ainda exista uma pressão social em sentido contrário, os que escolhem relacionar-se intimamente e sexualmente não têm, felizmente, a obrigatoriedade de trazer filhos/as ao mundo, mesmo que os/as filhos/as possam ser a materialização, a consumação da simbiose emocional. A emancipação feminina que floriu com esta liberdade também reconfigurou e exigiu do género masculino novas dinâmicas relacionais, que permitam o cumprir-se de ambos nas suas diferenças. Sabemos que o que os nossos sentidos alcançam é sempre muito pueril, mas assim também é a vontade de profetizar o amor, entre dois que se olham profundamente, com gestos sensoriais de troca e confirmação.

Lemos e relemos que, no passado regime autocrático, ao longo de quase meio século, o dramático e prosaico acontecia: da forma como algumas mulheres e meninas virgens podiam ou não namorar e casar (o pior seria ficar encalhada); da infidelidade consentida nos homens, mas imperdoável nas mulheres, com o direito penal aos crimes de honra, em que o marido (ou familiar) podia matar a adúltera; da ausência, nas poucas escolas, de turmas mistas, com turnos diferentes entre raparigas e rapazes (fardados); da proibição de beijos públicos ou demonstrações de afeto e de envolvência; da incompletude, do desencontro e insatisfação sexual e/ou emocional, tanto na mulher como também no homem (estilização de macho grotesco e infantil); do peso doutrinador, hipócrita e moralista de concepções católicas arcaicas e puristas, que convergiam na mulher a fonte dos pecados e desvios. Ainda hoje, a virtude feminina para a instituição católica prevalece no perfil de mulher mártir, mariana, casta, discreta, procriadora, cuidadora do lar, servidora, guardiã dos bons costumes. O passado fascista ditava as condutas de comportamento com normas sociais subjugadoras, culpabilizantes, discriminatórias, com papéis padronizados ou perfis estereotipados para meninos e meninas, rapazes e raparigas, homens e mulheres, que atingiam o domínio do privado, íntimo e pessoal. Os diversos tipos de pobreza, o analfabetismo, a ausência de escolaridade e défice de conhecimento alimentavam violentamente esta realidade, que não se anulou totalmente com o tempo, pelo contrário, quer voltar atrás!

Miseravelmente, deparamo-nos quase todos os dias, nos meios de comunicação e informação, com o crescendo de comportamentos e paradigmas culturais reacionários, mutiladores de qualquer existência plena ou relação, designadamente entre os jovens, com a banalização da violência, com visões arrogantes preconceituosas, com opiniões desinformadas e atitudes fascistas e misóginas. Nenhuma relação conjugal justifica o desgaste dos ponteiros, quando o que predomina são amarras de dependência, medo, convenção, poder ou extrema imaturidade espiritual. Há cedências de parte a parte, mas não é razoável vender reinos internos e sagrados por esmolas de afeto. Nenhuma mentira ou forma de prostituição se justifica.

Só em liberdade, o valor primeiro, possibilita o amor entre a melhor das utopias. A admiração, o desejo, o afeto indecifrável entre dois estranhos que eventualmente continuam a escolher-se, numa miragem fusional, conseguem, nas franjas e nas bordas dos limites, criar danças, dramas, linguagens de interação estética e poética como nenhum outro milagre orgânico consegue alcançar. Sem o lápis azul da censura e da ignorância, os livros, a música, o cinema, as artes podem ser parceiros do sublime com a criação amorosa. Os amantes alimentam-se da arte, das suas linguagens, tal como a arte retira substrato dos amantes.

Do erotismo e manifestações modernas da sexualidade humana, encontramos o melhor na qualificante literatura e poesia como no cinema, designadamente por via das obras que o futuro nos promete. Tratados e manifestos poderão ser os filmes como “O Piano”, da Jane Campion, “Disponível para Amar”, de Wong Kar-Wai, ou “Decisão de Partir”, de Park Chan-wook.

Da arte de viver que a Revolução dos Cravos possibilitou, e quando nesta se compromete a vivência a dois, desenvolver uma história de complementaridade e reciprocidade possibilita a originalidade da narrativa amorosa. Designadamente quando se manifesta entre dois artistas, que perpassaram pela revolução, como foram os casais Helena Almeida e Artur Rosa, Vieira da Silva e Arpad Szenes, Maria Gabriela Llansol e Augusto Joaquim ou Ernesto Sampaio e Fernanda Alves. Ernesto Sampaio escreveu para a sua Fernanda: “O amor é o único mito de pura exaltação que a humanidade conheceu. O único que parte do coração do desejo e visa a sua satisfação total. O único grito de angústia capaz de se metamorfosear em canto de alegria. Com o amor, o maravilhoso perde o carácter sobrenatural, extraterrestre ou celeste que possui em todos os mitos, regressando de algum modo à sua origem para se inscrever nos limites da existência humana. Dando corpo às aspirações primordiais do indivíduo, o amor oferece uma via de transmutações que culmina com o acordo da carne e do espírito, tendente a fundi-los numa unidade superior. O desejo, no amor, longe de perder de vista o ser da carne que lhe deu origem, sublima o seu objeto numa espécie de sexualização do universo que restabelece no homem uma coesão anteriormente inexistente. O amor não admite a menor restrição: tudo ou nada, sendo o tudo a vida e o nada a morte.”1

As linguagens que criamos do mundo são as fantasias do que somos. Assim são os que se amam, criam com signos, medidas, temperaturas, simbioses, ritmos e silêncios a própria regeneração do amor. É no galgamento emocional, aditivo e de complementaridade que a relação dual, e algumas vezes mística, viabiliza a transmutação. É necessário tempo para somar, para limar, ao melhor da nossa autenticidade, os filamentos que nos unem a um cúmplice de caminhadas noturnas, em que a presença de um fertiliza a presença do outro. Como qualquer animal que se encontra num baldio a apanhar chuva, consternado ao recolhimento do seu próprio corpo, assim estamos perante o amor.


Referência

  1. ”Fernanda”, de Ernesto Sampaio, Fenda, 2000. ↩︎

Partilhe este artigo:

Laíz Vieira nasceu na Venezuela em 1971, devido à emigração dos pais gauleses. De retorno à Ilha na infância, viveu muitos anos na cidade de Machico, onde as principais revelações se fizeram.

Contraponha!

Discordou de algo neste artigo ou deseja acrescentar algo a esta opinião? Leia o nosso Estatuto Editorial e envie-nos o seu artigo de opinião.

Mais artigos da mesma autoria: