O Abril dos amanhãs

Num país estruturalmente pobre e desigualitário, onde proliferavam as diferenças sociais com base no berço, onde ascender socialmente era, para muitos, um sonho impossível, chegou ele – o início do amanhã que Portugal tanto ansiava.

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Qualquer que seja o momento histórico – em qualquer País – há sempre erros, hesitações e excessos. Mas há também aquilo que fica, o que muda para sempre. E o que ficou, no caso de Abril de ‘74, foi muito mais do que um golpe militar ou o fim de uma ditadura: foi o estremecimento de um povo inteiro que, de repente, descobriu que podia falar, escrever, cantar, votar, viver — descobriu o fino sabor da liberdade.

O Portugal que Abril rasgou ao meio era um país esgotado por uma guerra colonial que durava há treze anos, onde se morria em silêncio nos hospitais e onde poucos tinham a possibilidade de aprender nas escolas. Mais de um quarto da população adulta era analfabeta1, e as mulheres, por lei ou por costume, tinham o seu lugar sempre abaixo dos homens2. Uma canção, um poema, uma reunião de bairro podiam ser suficientes para uma visita da polícia política. O medo tinha domesticado a imaginação.

E, de repente, bastaram duas senhas na rádio  e tudo mudou. Os soldados saíram à rua, os cravos foram colocados nas espingardas, e as cidades encheram-se de um som novo: o som da multidão que ousava existir – ousava pensar! Não foi apenas um regime que caiu. Foi uma cortina que se rasgou. E por esse rasgão entrou o ar fresco da liberdade.

Liberdade. Palavra gasta, abusada, tantas vezes usada em vão — mas que em Abril se começou a tornar real. Não foi perfeita, nem consensual. O que se seguiu foi caótico, intenso, profundamente político. Vieram as nacionalizações, as reformas agrárias, os debates acesos nas fábricas, nos campos, nos cafés. Veio uma quase viragem de um regime ditatorial de direita para um regime ditatorial de esquerda. Mas, o povo, esse tal de quem raramente se esperava mais do que obediência, tornou-se protagonista. E, como qualquer protagonista, errou e aprendeu. Mas caminhou.

Foi esse caminhar que ergueu as bases do Estado Social. A escola pública universal, o Serviço Nacional de Saúde, a liberdade sindical, a igualdade entre homens e mulheres — tudo isso nasceu, em forma ou em semente, dos dias de Abril até às noites de Novembro. Nada disto existia em 1973. Em 1975, discutia-se nas ruas. Em 1976, estava consagrado na Constituição da República Portuguesa.

Claro que a democracia não resolveu tudo. A desigualdade sobreviveu, adaptou-se, sofisticou-se. Muitos dos que festejaram Abril viram, nos anos seguintes, a esperança dar lugar à desilusão. A falsa meritocracia substituiu o medo, mas também o sonho. O voto, essa arma de transformação, foi-se tornando rotina — e, hoje, volvidos 50 anos, quase uma mera formalidade.

Mas quem quiser compreender o que Portugal é hoje, tem de olhar para Abril e Novembro. Porque foi ali que se decidiu que a censura não voltaria, que o medo não mandaria mais, que os filhos dos pobres teriam o mesmo direito a aprender, a sonhar, a mandar. Foi ali que se decidiu que o futuro — com todos os seus riscos — valia mais do que o conforto morno da submissão.

É por isso que Abril permanece. Não apenas como memória, mas como farol. Como aquele momento raro em que um povo, cansado de sobreviver, se atreveu a existir com dignidade. Os que hoje falam em excesso de liberdade ––  seja lá o que isso for… ––  em saudades da “Lei e Ordem”, temem em esquecer que essa “ordem” se sustentava no silêncio imposto, nas amarras ao pensamento, na ignorância forçada na castração da opinião. Esquecem-se que os seus “Eu acho que…” são possíveis, precisamente, porque Abril iluminou o caminho para Novembro. 

Constituiu uma verdadeira revolução social onde o português pobre ou rico, do interior ao litoral, vislumbrou, pela primeira vez em séculos, olhar em frente e ver um futuro possível para si e para os seus. Um país onde o elevador social começou a funcionar, não por favores ou sangue, mas pelo mérito, pela educação, pela vontade de mudar. Onde o estudo passou a ser um caminho — e não um privilégio — para quebrar a roda da desigualdade. Onde filhos de operários chegaram a médicos, filhas de agricultores chegaram a professoras, netos de analfabetos chegaram à universidade. 

Portugal mudou. E essa mudança teve data de início: 25 de Abril de 1974. Não foi o início nem o fim da história. Aliás, nunca poderia ser – Portugal, quase milenar, muito contou e muito tem para contar. Mas foi, seguramente, o princípio de um país onde, finalmente, o homem comum, no seu dia a dia comum; com a sua família comum, podia sonhar em ter, ou fazer, história.Que nunca nos falte a vontade de cumprir o Portugal dos Amanhãs.

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  1. Segundo os Censos de 1970, realizados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), a taxa de analfabetismo em Portugal era de cerca de 25,7% da população com 10 ou mais anos de idade. Este valor era ainda mais elevado entre as mulheres e nas zonas rurais, especialmente no interior do país in PORDATA (base de dados da Fundação Francisco Manuel dos Santos): https://www.pordata.pt. Indicador: “População residente analfabeta (%) por sexo e grupo etário – Portugal, 1970 ↩︎
  2. Até 1969, uma mulher precisava de autorização do marido para trabalhar fora de casa (art. 1680.º do Código Civil de 1966). ↩︎

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Fernando Almeida Marques. De Cortegaça, mas atualmente em Lisboa. Jovem. Advogado. Presidente da juventude do PSD Ovar.

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