Imperialismo e repressão: O fardo oculto da civilização portuguesa

"Prestes a celebrarmos os 51 anos do 25 de Abril, não podemos deixar de reconhecer que estamos à beira de um imenso espólio de reflexões, como se o passado fosse um baú - mas, em vez de tesouros, estivesse repleto de esqueletos à espera de serem revelados. O momento de abrir o baú é agora, sem hesitação...

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Portugal, ao manter ocultos certos aspetos da sua história, teima em tratar a História como um conjunto de palavras bem compostas e finalidades felizes, repletas de heróis de capa branca. Contudo, esta visão simplificada ignora a complexidade dos acontecimentos, especialmente no que diz respeito ao Estado Novo. A revolução de 25 de Abril foi vivida de maneiras substancialmente distintas. Sendo que, enquanto muitos na metrópole viam com júbilo a queda de uma teia de controlo, violência e repressão, outros nas ex-colónias respiravam liberdade, com a mesma hesitação de quem não sabe se o ar que respira será o último. 

A ironia aqui é que a libertação dos povos colonizados e a independência das ex-colónias não foram vividas de maneira simples, como muitas vezes se tenta transmitir, principalmente por quem estava distante das realidades destas terras. O 25 de Abril trouxe de facto uma sensação de alívio, mas, para muitos, principalmente nas ex-colónias, a liberdade foi seguida por outros suspiros mais pesados, refletindo os vestígios de um império que se recusava a desaparecer.

Para os portugueses que vieram das ex-colónias, a chegada a Portugal não foi simplesmente uma nova oportunidade, foi uma experiência dolorosa. Muitos saíram das ex-colónias com uma mão à frente e outra atrás, com as suas memórias e, com o peso de um país que não sabia lidar com os resquícios de uma história imperial que continuava a ser silenciada. O país, com as suas unidades habitacionais e cotas específicas no funcionalismo público, parecia procurar uma solução rápida, quando a resposta ao sofrimento era muito mais profunda e complexa. Era como se, ao ver aqueles que vinham das ex-colónias, houvesse uma espécie de desaprovação, um olhar de desconfiança, como se estes não tivessem razão para estar em Portugal, como se estivessem a invadir o próprio país. 

Surpreendentemente, ainda surgiam interações grotescas, como a de pessoas nascidas em Portugal, descendentes de portugueses nas ex-colónias, que ao pedir certos apoios sociais, eram confrontadas com respostas como: “O teu avô andou a lutar pela independência da colónia Y e agora vens para aqui pedir apoios?”. Esta hostilidade não era apenas uma questão de um país mal preparado para lidar com o pós-colonialismo, mas também um reflexo de um Portugal que, na sua maioria, ainda via o império como um projeto legítimo e necessário, uma mentira repetida tantas vezes, que passava a ser vista como verdade.

Esse império português, projetado como uma grande civilização que trazia progresso e sabedoria ao mundo, não era de longe o que muitos tentam vender. Tal como já sugerido, esse império foi uma farsa, onde a grandeza que tanto se exalta é apenas uma projeção de um poder que procura esconder o abuso, a exploração e a violência. O que Portugal nunca pode esquecer é que a sua história colonial não foi um conto de heroísmo e luz, mas um processo de exploração que destruiu culturas, povos e identidades. Portanto, o 25 de Abril, no seu ideal de libertação, também deveria ser encarado como um momento de enfrentamento das sombras do colonialismo que ainda pairam sobre o país e o mundo. Os ex-colonizados não só enfrentaram a independência, mas também lidaram com o peso de um império que se recusava ser enterrado.

Por consequência, a história do império português continua a ser uma das partes mais difíceis do nosso passado. Pois, ao contrário do que alguns tentam apregoar, a repressão colonial portuguesa não foi uma versão mais suave ou amena. Não podemos cair na falácia de que nas ex-colónias havia mais liberdade ou prosperidade em comparação com a metrópole. A repressão portuguesa, tanto na metrópole quanto nas colónias, foi igualmente brutal e implacável, com a presença de tanto violência física como psicológica, que afetava qualquer forma de resistência. Como ressalta Fernando Rosas na obra História a História – África, o número reduzido de estudos sobre a repressão nas colónias, especialmente no que diz respeito à polícia política, só evidencia o quanto esta história permanece ignorada e minimizada. As mortes, torturas, prisões e violência sistemática, continuam a ser tratadas com indiferença e silêncio, como se nunca tivessem sido parte do núcleo da política colonial portuguesa. Outra voz, no entanto, deve ser ouvida: a repressão colonial portuguesa não foi uma fábula, mas sim uma estratégia de controlo brutal que moldou o sofrimento de milhões.

É precisamente aqui que entra a fundamental contribuição da historiadora Dalila Cabrita Mateus, cujo trabalho sobre a PIDE/DGS na Guerra Colonial não revela apenas a face cruel dessa repressão, mas também evidencia que esta não se limitava a atos isolados de violência. Pelo contrário, a violência era uma prática metódica, que visava destruir qualquer possibilidade de resistência. Na sua obra, detalha como a repressão colonial não se resumia apenas à violência física, mas se estendia à tortura psicológica, o que é indispensável para compreender a extensão do sofrimento que as populações das ex-colónias enfrentaram. Sem o trabalho da autora, ainda estaríamos a aceitar simplificações que tentam justificar a violência como algo necessário para manter a ordem.

Ademais, se não fosse esta obra de Dalila Cabrita Mateus, muitas seriam as pessoas que hoje continuariam a pensar que a repressão nas colónias era mais suave, porque o seu tio dizia que podia beber Coca-Cola na colónia X e que conhecia um amigo que andava com isqueiro sem licença na colónia Y. A violência não se mede por esses pormenores. Como se a brutalidade fosse menos brutal porque alguém tinha essas comodidades. Como se a Coca-Cola fosse algum tipo de bálsamo que apagasse o sofrimento. Como se ao estarmos distraídos com esses elementos, o horror da repressão se tornasse menos real. No entanto, continuar-se-á a enterrar as vozes que gritam a sua verdade, enquanto o império será recordado, não pelo que destruiu, mas pela mentira que se teima em perpetuar.


Referências bibliográficas:

Cabrita Mateus, D. (2004) A PIDE/DGS na guerra colonial: 1961-1974. Terramar.

Rosas, F. (2018) História a História – África. Tinta-da-China.

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Sofia Acúrcio Pires é finalista da licenciatura de História na Universidade Nova de Lisboa, e vem da pitoresca zona oeste de Portugal.

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