Uma nação, qualquer que ela seja, ultrapassa necessariamente diversas etapas do seu crescimento enquanto país, mais ou menos satisfatoriamente. Algumas há que, ao invés de as superarem, permanecem por elas presas como se de autênticos grilhões se tratassem, mantendo-se, por isso, gravemente recuadas face aos seus parceiros (ou inimigos?) da corrida evolutiva. Fração mais pequena corresponderá certamente ao grupo de países que, muito embora tenham transposto com sucesso a maior etapa já documentada do seu desenvolvimento, não a aprofundam, não a assinalam verdadeiramente, apesar de a festejarem todos os anos. Um desses países é Portugal.
É a partir da supradita constatação que Sérgio Tréfaut, cineasta brasileiro, parte numa odisseia à busca de documentação fotográfica e fílmica que contemple a revolução dos cravos, ocorrida em Portugal. Depara-se com mais de quatro dezenas de filmes realizados por cineastas estrangeiros, todos eles com cópia nos arquivos dos respetivos países, mas é num jardim à beira-mar plantado, onde canteiros se enchem de cravos, que encontra o maior oxímoro deste seu processo de investigação: nenhum destes filmes tem cópia em Portugal.
“Outro País” (1999)1 faz jorrar rios a partir destas fontes primárias, agora transformadas em nascentes no cimo de uma serra que é a nação portuguesa, trá-las novamente para o grande primeiro plano luminoso e dá voz aos realizadores, alguns dos quais bastante jovens quando vieram filmar Portugal. E é transversal a opinião daqueles que tiveram o privilégio de contactar com o antes e o depois do 25 de abril de 1974: Portugal emanava um ar triste, melancólico e enfastiado, que veio a ser substituído pelas ruas cheias de gente, o regresso dos exilados e as frases livres de quem já não temia a censura das suas ideias.
Creio que terá sido esta clivagem que conduziu Tréfaut a atribuir o nome de “Outro País” a um documentário capaz de condensar, em não mais do que 70 minutos, pequenos excertos de alguns filmes estrangeiros sobre o processo de democratização português. Aparentemente, estaríamos perante uma nação distinta. Não consigo, no entanto, concordar com o já exposto. Não há outro país, nem temos outro país.
Considero que Portugal nunca deixou de ser o mesmo. A sua independência enquanto reino em 1143, a expansão ultramarina, o terramoto de 1755, a ditadura e consequente estabelecimento de colónias (de mau gosto eufemisticamente chamadas de “províncias ultramarinas” pelo regime do Estado Novo), a revolução dos cravos; nada disto gerou clivagens de tal ordem que nos fizesse sermos nacionais de um país diferente. E não creio que alguém selecione cinco muito diferentes momentos mais marcantes da nossa história. Toda ela se escreveu, escreve e escreverá nas mesmas linhas portuguesas, por vezes tortas, mas inegavelmente nossas.
Assinalar o 25 de abril, mais do que o seu festejo, já que isso o priva de todo o seu peso histórico e narrativo, implicaria garantir que as gerações vindouras dispõem de um suporte onde possam ver e ouvir os relatos de quem experienciou em primeira pessoa todo o processo revolucionário. Se nos encontramos num ano já distante em mais de meio século de 1974, volvido outro igual período e praticamente não existirá uma qualquer pessoa viva capaz de nos relatar exatamente o que viu e ouviu. A película, atualmente substituída pelo digital, é capaz desse milagre: o da eternização.
Importa apetrechar o Arquivo Nacional das Imagens em Movimento2 de mais e melhor conteúdo sobre uma das nossas maiores etapas (e dores) de crescimento do último século. Creio, ainda, que este mister é completamente alheio à apropriação partidária do 25 de abril de 1974 ou do 25 de novembro do ano seguinte, como amiúde se assiste; e acredito piamente nisto, dado que ao cinéfilo (potencialmente, uma qualquer pessoa que venha a fomentar a admiração pela sétima arte) só importa o que observa na tela. O resto será refletido e contextualizado à luz do seu próprio quadro de referência, em termos de crenças e valores. Nunca este processo será um desperdício e é, aliás, a mais bela forma de exercício da nossa autonomia: o direito a tomarmos decisões livremente, incluindo o que diz respeito às conclusões que tiramos daquilo que vemos e ouvimos.
Se Luís de Camões versou sobre o declínio português3, por considerar que “Do mal ficam as mágoas na lembrança,/ E do bem, se algum houve, as saudades.”, proponho, se a soberba não for excessiva, uma reformulação do primeiro verso deste poema: mudam-se os tempos, permanece Portugal. O Quinto Império que Fernando Pessoa4 idealizou poderá bem ser esse: um Portugal capaz de olhar para o seu passado, não como uma manta de retalhos de dissonante identidade, mas como um mesmo empreendimento de milhões e milhões de pessoas à procura da sua evolução, por mais percalços que tenham encontrado ou alçapões onde possam ter caído e permanecido durante imenso tempo.
“Ó Portugal, hoje és nevoeiro…
É a hora!
Valete, Fratres”
- https://www.faux.pt/film/outropais/pt/index.html ↩︎
- http://hdl.handle.net/10362/17617 ↩︎
- Luís de Camões – Rimas. (2025). Almedina. ↩︎
- Pessoa, F. (2014). Mensagem. Edições Vercial. ↩︎