Sou mulher, serei pessoa?

“Num prazo muito curto, parece que toda a informação à minha volta me trouxe a este momento de reflexão: a mulher não é vista como pessoa.”

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Num prazo muito curto, parece que toda a informação à minha volta me trouxe a este momento de reflexão: a mulher não é vista como pessoa. Apresento três exemplos.

Primeiro, li um artigo sobre aborto nesta mesma revista, “O Aborto e a Consciência: Entre o Ser e o Não-Ser”, em que o autor chega à conclusão que (resumindo muito): pomos a pessoa grávida em detrimento de um ser, que nem sequer se pode considerar pessoa, visto que não tem consciência de si nem do outro. Existe uma pessoa que, normalmente, caminha na rua, lê, trabalha, pratica desporto, e ninguém dá importância; a partir do momento que engravida, carrega um bem precioso que é social e partilhado por todos. A mulher carrega o filho, sendo completamente ignorada enquanto pessoa, com personalidade e ideias. Continua-se a abordar o tema do aborto e a ter discussões intermináveis de quando o feto se torna uma pessoa, mas em momento algum se fala da pessoa que já existe, e que sabe que não quer uma criança agora, quer seja pelas alterações fisiológicas quer pela incapacidade de dar qualidade de vida ao bebé. Como é que socialmente se pode achar que a decisão não é dela?

A meu ver, liga-se à ideia da tradwife, que cuida da casa, dos filhos, da aparência, tenta ser o mais feminina possível, e, se for só isso e não tiver ideias ou personalidade, não há problema. Não estou a dizer que todas as mulheres nesta condição não tenham ambições ou ideias, no entanto, há uma agenda conservadora em fazer acreditar que ser tradwife é o apogeu da magnificência feminina, sendo que, para uma mulher, depender financeiramente do parceiro pode levar, por exemplo, a não abandonar o agressor em casos de violência doméstica.

O segundo exemplo refere-se à notícia da alegada violação por vários abusadores influencers, sendo que um deles não só divulgou um vídeo, como expôs o nome e a imagem da rapariga, além do facto de ela ter ido para o hospital. Novamente: se eles a respeitassem como ser humano, ela seria descrita desta maneira? Tem tanto de nojento e ordinário como remete a uma ideia de submissão semi-humana, visto que a vítima vai para o hospital em condição grave e, para o agressor, teve o mesmo valor moral de partir um copo ou lascar um prato. Não vou comentar a podridão de carácter destes influencers nem as ideias erradas que proliferam aos visualizadores sobre o acto sexual, porque me deixa profundamente enojada e triste. Acho que só não vê quem não quer, e quem não quer não vai ler este artigo.

Finalmente, Madalena Sá Fernandes, uma escritora portuguesa, foi criticada da forma mais infantil e sexista que eu já vi. O escritor João Pedro George, ao abordar a obra “Leme”, começou por dizer que a autora era fria ao falar sobre o tema da violência doméstica, e foi a única vez que, ao criticar a obra, a referiu. Prosseguiu por criticar o Instagram dela, porque começou a ver (primeiro ia dizer “receber”, mas a boca fugiu-lhe para a verdade, podendo já imaginar os grupos de chat deste senhor) fotos dela feliz e “pouco tapada”. A Madalena não pode em tempo algum ser feliz, assim como as viúvas têm de andar de preto para o resto da vida. Depois, todas as críticas foram, de facto, elogios: obra traduzida, filas de fãs, bons contactos com pessoas do meio, etc. Mas deu-lhe um tom depreciativo… A inveja deste senhor era palpável. Não só comentar o corpo foi quase a primeira coisa que ele fez, como sexualizou-a e tentou diminuí-la, sem sucesso nenhum, porque nenhum dos argumentos usados era depreciativo; todos eles eram elogios; se ele não entendeu isso, nem quero imaginar o que escreve. Mais um intelectualoide frustrado, porque há uma mulher (jovem!) feliz e com imenso sucesso.

Como já referiu Maria Castello Branco no podcast “Lei da Paridade”, um homem pode ser ameaçado fisicamente, mas uma mulher, na grande parte das vezes, é ameaçada física e sexualmente. Em todos os exemplos, uma parte da integridade humana da mulher é-lhe retirada, ou a possibilidade de escolha, ou a legitimidade de trabalho, ou sob a forma tortuosa de abuso. Esta ideia de controlo, como forma de nos inferiorizar, está também em pequenas coisas da vida, na forma como homens tratam mulheres: a incapacidade de nos amar; de mostrar vulnerabilidade ou respeito; assumir um compromisso; a generosidade das pequenas coisas; homens que amam os amigos sentem-se sexualmente atraídos a mulheres, mas desprezam-nas; a vulgaridade como falam de mulheres tornando-nos bonecas sexuais, o que leva muitos a achar que podem “pegar e usar”. A lista é interminável, e o caminho a percorrer parece sê-lo também.

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25 anos, licenciada em Fisioterapia pela Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Coimbra, actualmente exerce no contexto desportivo, acompanhando a equipa de Seniores B/juniores do Sporting Clube de Portugal e no contexto de clínica.

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