Afinal, à mulher de César não basta parecer, é mesmo preciso ser

"A imagem de um partido ou de um político não é feita apenas daquilo que diz, mas principalmente daquilo que faz. E, no caso do Bloco de Esquerda, a falta de coerência entre discurso e prática tem um custo elevado."

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A política, como qualquer outra área da vida – pública ou privada – exige uma dose considerável de coerência, transparência e, acima de tudo, valores. A imagem pública de uma figura política ou de um partido é construída a partir das suas ações, discursos e do exemplo que transmite. Quando as palavras proferidas estão em flagrante contradição com os atos praticados, a confiança da população enfraquece e a moralidade da política começa a desmoronar. Essa falta de alinhamento entre discurso e prática tem tornado cada vez mais difícil para muitos eleitores confiarem nos seus representantes. Um bom exemplo disso pode ser observado em algumas atitudes contraditórias do Bloco de Esquerda ou no insólito caso do deputado-furta-malas1.

É, pois, um dado incontestável que a política se alimenta, muitas vezes, da moralidade e da ética, e que os eleitores esperam que aqueles que defendem bandeiras cumpram, pelo menos, o que apregoam. No entanto, e no caso recente com que o Bloco de Esquerda tem sido confrontado, essas situações colocam em xeque a sua própria coerência. O caso das trabalhadoras dispensadas pelo partido, sendo que pelo menos três delas estavam ainda a amamentar2, é um exemplo claro dessa incongruência e falta de verticalidade. O Bloco de Esquerda, que se tem posicionado como um crítico feroz das políticas de precarização laboral e da discriminação no ambiente de trabalho, parece esquecer-se desses princípios fundamentais quando se trata de agir dentro de casa (a troikização da sede nacional?).

Dispensar mães, muitas delas ainda em período de amamentação, não é apenas uma questão legal — é uma questão moral. Como é possível admitir que um partido que se apresenta como defensor dos direitos das mulheres e da igualdade de género leve a cabo tal prática na sua própria casa? A incoerência é ainda mais vincada quando, ao mesmo tempo, o Bloco de Esquerda continua a atacar ferozmente a política de despedimentos nas empresas privadas e a demonizar os pequenos, médios e grandes empresários por práticas economicistas (muitas, em nada semelhantes). O que fica claro é que, quando a retórica esbarra com a realidade das suas ações, a falta de ética e a hipocrisia saltam aos olhos de qualquer cidadão atento – será isto o levantar do véu daquilo que seria a implementação da generalidade das medidas defendidas pelo próprio Bloco de Esquerda?

O mesmo acontece quando se fala da especulação imobiliária e dos projetos de urbanização que afetam em especial os portugueses que residem em cidades altamente povoadas. Durante anos, o Bloco de Esquerda fez da luta contra a especulação imobiliária uma das suas bandeiras, acusando os partidos de direita e os investidores de serem os responsáveis pela gentrificação das cidades e pela exclusão social. No entanto, quando o nome de Ricardo Robles3, membro e eleito do Bloco de Esquerda, foi associado a práticas de especulação imobiliária, o partido não só se mostrou condescendente como também procurou minimizar a gravidade da situação. A hipocrisia aqui é igualmente flagrante: como pode um partido que tanto critica o envolvimento de figuras da direita com o setor imobiliário manter-se em silêncio ou adotar uma postura branda perante as atitudes de um dos seus próprios membros? O que estamos a assistir, mais uma vez, é à diferença entre o discurso inflamado e a realidade prática (o teste de algodão do Bloco de Esquerda: a realidade).

Esse tipo de incongruência não é algo isolado nem exclusivo do Bloco de Esquerda. Reflete, antes, um problema mais profundo que atravessa a política portuguesa no geral. A crescente desconfiança da população para com os políticos surge, em boa parte, da perceção de que as ações não correspondem às promessas feitas, e que os interesses pessoais e partidários muitas vezes sobrepõem-se ao bem coletivo. A política deveria ser a arena onde as ideias se confrontam e onde se tenta, de forma honesta, criar soluções para os problemas da sociedade. Contudo, em vez de debater políticas públicas de forma construtiva, muitos partidos preferem ocupar o pedestal do moralismo e da crítica feroz, enquanto simultaneamente se mostram dispostos a fechar os olhos a comportamentos que contradizem os seus próprios princípios.

O impacto dessa falta de moralidade e coerência vai muito além das questões partidárias ou da oposição, tendo um efeito verdadeiramente devastador na confiança que os cidadãos depositam nas instituições e na política em geral. Quando vemos que aqueles que se dizem defensores dos mais vulneráveis agem da mesma forma que os inimigos de quem tanto criticam, o que sobra é uma sensação de que a política é um jogo de interesses, onde os ideais e os valores são apenas uma fachada para esconder os verdadeiros objetivos. A política perde o seu sentido e, com isso, a democracia vai-se tornando todos os dias um bocadinho mais vulnerável.

Assim, chegamos ao dilema: à mulher de César não basta parecer honesta, ela tem de ser honesta. Aos políticos também não basta parecerem defensores da justiça e da igualdade — é necessário que o sejam, na sua prática diária, nos seus atos concretos. A confiança nas instituições e nos seus representantes não é algo que se construa apenas com palavras bonitas ou discursos inflamados; ela constrói-se com base nas ações, nas escolhas feitas e na coerência entre o que se diz e o que se faz.

A imagem de um partido ou de um político não é feita apenas daquilo que diz, mas principalmente daquilo que faz. E, no caso do Bloco de Esquerda, a falta de coerência entre discurso e prática tem um custo elevado. Não é apenas uma questão de contradição ideológica; é uma questão de moralidade política, de integridade e, por fim, de confiança nas instituições democráticas.

Quando a política se torna um jogo de aparências e interesses, perdemos todos.

Referências

  1. Panda, A. (2025). Deputado do Chega admite às autoridades furto de malas. Jornal de Notícias.  https://www.jn.pt/7366259855/deputado-do-chega-admite-as-autoridades-furto-de-malas/ ↩︎
  2. Godinho, J. & Cunha, M. (2025). Bloco de Esquerda dispensou quatro trabalhadoras que tinham sido mães pouco tempo antes (pelo menos três estavam ainda a amamentar). Observador. https://observador.pt/2025/01/21/bloco-de-esquerda-despediu-cinco-trabalhadoras-que-tinham-sido-maes-pouco-tempo-antes-pelo-menos-tres-estavam-ainda-a-amamentar/ ↩︎
  3. Caetano, E. (2018). Ricardo Robles, vereador do BE, pôs à venda prédio em Alfama com mais-valia de 4 milhões em 4 anos. Observador. https://observador.pt/2018/07/27/ricardo-robles-vereador-do-be-poe-a-venda-predio-em-alfama-com-mais-valia-de-4-milhoes-em-4-anos/ ↩︎

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Fernando Almeida Marques. De Cortegaça, mas atualmente em Lisboa. Jovem. Advogado. Presidente da juventude do PSD Ovar.

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