Nasci junto do mar. Nasci dentro do campo. Tive desde sempre a natureza a embrulhar-me o corpo e no cenário que os meus olhos engoliam. Ambos me trazem uma paz ultrapassada, que me transporta para um tempo que é meu apenas em memórias. A uma pessoa que estará algures dentro de mim, por baixo das camadas que fui juntando ao longo do tempo. São meus de uma forma fugidia, somente porque foram meus um dia.
A frase ‘’É preciso sair da ilha para ver a ilha’’, da autoria de José Saramago, invade-me as ideias de quando em vez, assustando-me com a constatação de que nunca nos conhecemos em tempo real. O processo de autodescoberta é sempre um exercício de retrospetiva.
Eu achava que gostava da calmaria do campo e da praia, até sair do campo e da praia e descobrir a cidade. A cidade grande que me fizeram acreditar ser palco de todos os defeitos do mundo. Achava eu que gostava de ir à janela e ver apenas as folhas a bambolear ao vento e o som distante e abafado de um carro a passar numa estrada afastada. Achava que gostava de viver num sítio que parecia ter sido esquecido pelo mundo, mas não gostava.
Recordo-me agora, à distância do tempo que passou, de viagens de carro que se tornavam em desfiles de pequenas janelinhas fugazes que, à luz do lusco-fusco, deixavam derramar salas, quartos e arrecadações de casas que eu não conhecia. Um pequeno mundo dentro de cada um daqueles quadrados que teimavam em não parar quietos para que eu absorvesse cada detalhe: que rostos estariam nas molduras penduradas nas paredes, que troféu seria aquele em cima de uma estante de madeira e a que detergente cheirava a roupa a secar no estendal. Percebi que cada casa é um mundo. Gostava de invadir à distância, os mundos criados por pessoas que eu não conhecia. ‘’Qual o cheiro característico daquela casa? Qual o nome do gato branco sentado à janela? Quantos presentes estarão debaixo daquela árvore de Natal?’’. Não sei agora, não sabia naquela altura e talvez seja a noção de que nunca o descobrirei que me atrai até hoje. Como o vidro de um aquário num oceanário, é algo que eu nunca vou poder trespassar.
Nessas viagens de carro, que começaram por ser aborrecidas, descobri que gostava de viver em sítios que estavam constantemente habitados. Com barulho, pessoas na rua e carros a afastar o esquecimento com a sua velocidade. Sentir que não estou sozinha no mundo é algo que me conforta imensamente e que parece escrito nas paredes quando estou numa cidade. As pessoas são o motivo de eu odiar muita coisa, mas serão sempre a razão pela qual eu quererei sempre permanecer por cá.
Há algo de fascinante em saber que milhares de pessoas partilham os mesmos quilómetros quadrados e se esforçam para não usurpar a vida uns dos outros. Pisamos as mesmas pedras de calçada dia após dia sem deixar uma marca que dê uma pista ao nosso vizinho, que não conhecemos, e que passará pelo mesmo chão no dia seguinte. Desviamo-nos para não irmos uns contra os outros, não tocamos à campainha de desconhecidos para não incomodar, travamos a fundo para não atropelar pessoas que nunca vimos e sorrimos quando nos dizem ‘’bom dia’’.
Sei que o mundo nos encaminhou para bolhas próprias de onde temos, muitas vezes, dificuldade de sair. A ansiedade social cresceu como ervas daninhas e impede-nos de estar à vontade na companhia de desconhecidos. As conversas não surgem leves como parecia acontecer antigamente. Não se trocam jornais nas pastelarias nem se faz conversa em paragens de autocarros, é verdade. Mas existimos todos ao molho e fazemos o esforço de manter as bolhas intactas. Acredito que haja quem veja uma tristeza imensa nisso, uma distância que nos habituamos a ter uns com os outros, mas por baixo da tristeza, escavando pelas camadas que existem em tudo, há respeito e atenção.
No conto ‘’A Princesa e a Ervilha’’, ela foi capaz de sentir uma pequena esfera leguminosa por baixo de vinte colchões e vinte cobertores. Acho que, na vida, temos de fazer algo parecido para encontrarmos motivos que nos mantenham felizes por estarmos aqui.
Ao longo dos anos, feitas mil e uma mudanças de casa, observando janelinhas alheias e imaginando mundos que não o meu, fui construindo, na minha ilha, a noção de casa. Acho que ver razões para alimentar a felicidade é uma boa fundação para se construir um lar. Alimentar a floresta de janelas reluzentes e fazer com que alguém do outro lado sinta um conforto vindo de lado nenhum ao olhar para a nossa. Para mim, uma casa é algo parecido com isso.
Pintura de capa por Gizella Fejes
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