Poucas pressões na vida são maiores que a de criar um filho. Foi algo que sempre quis, sempre sonhei e idealizei. No entanto, a nossa cabeça tem, quase sempre, a tendência malévola de apagar os defeitos do futuro idealizado. Enaltece com folha de ouro as partes inequivocamente bonitas daquilo que ainda não conhecemos.
Eu não sabia ser mãe antes de ser mãe e muitas vezes, já sendo, sinto que continuo a não saber. Sei que amo o meu filho com o corpo todo e por mais que muitos digam que isso basta, basta também para servir como uma espécie de maldição, que me atormenta em cada passo que dou, decisão que tomo e palavra que me sai pela boca. Amo-o tanto que quero acertar em absolutamente tudo. Não vou acertar em tudo, como nenhuma mãe na história da Humanidade acertou em tudo.
Acontece que sou mãe numa era bastante peculiar. Provavelmente, muitas mães antes de mim diriam exatamente a mesma coisa, uma vez que o mundo tem sempre a tendência de mudar face ao passado, dando sempre, a quem o habita, a sensação de viver na época mais disruptiva que já existiu. A parte engraçada é que todos tiveram razão até hoje.
É inevitável olhar o meu filho a ser criança sem comparar com aquilo que me lembro da minha própria infância. Vejo-o brincar sozinho num apartamento no meio da cidade, sem varandas e com todo o tipo de entretenimento à volta dele, e vejo sobreposta, como que num véu transparente, a criança que fui a brincar, também sozinha, num quintal de uma vivenda no campo. As sopas de ervas e terra eram prato-do-dia, as competições entre mim e os bichos-da-conta e o barulho ensurdecedor das cigarras são elementos tão queridos na minha nostalgia e, estranhamente, desconhecidos ao meu filho. As nossas referências serão absurdamente distintas. Como se não pertencêssemos à mesma espécie e o nosso habitat fosse outro.
Temos apenas 25 anos de diferença e chega a ser tenebroso ver o quanto o mundo mudou em tão pouco tempo. Ouvi algures que “sociedades evoluídas evoluem mais rápido”, que nos últimos 10 anos a evolução foi maior e mais drástica que em 50 ou 60 anos no século XIX e que a tendência é aumentar. Tecnologicamente, vivemos aquilo que os nossos pais nem sonhavam ser possível, reclamando quando a televisão, que compramos através do computador a uma loja do outro lado do mundo, demora 8 dias a chegar ao invés dos 4 que nos prometeram. Temos o mundo e a informação toda dentro dos bolsos das calças e tornamo-nos numa espécie de cyborgs com pequenos ‘ecrãzinhos’ nas palmas da mão. Indo finalmente ao ponto: são estes ‘ecrãzinhos’ que, enquanto mãe, me atormentam.
O psicólogo Marc Massip, especialista em dependência de ecrãs, alertou que os pais não devem dar telemóveis aos seus filhos antes dos 16 anos, uma vez que a dependência dos mesmos é semelhante à da heroína. Quando li esta notícia, levei uma bofetada estratosférica que, não tendo sido real, me doeu como se fosse. Tendo eu pesquisado imenso sobre este assunto desde que o meu filho chegou ao lado de cá do mundo, fiz o esforço de não o colocar em frente a nenhum ecrã até ele ter cerca de 1 ano e meio. Senti-me, simultaneamente, uma super-heroína (ironia não intencional) que durante 18 meses lutou contra o mundo, e uma falhada que não conseguiu prolongar esse modo de vida. Até hoje é um esforço diário tentar afastar os ecrãs do meu filho, e vice-versa. Obrigo-me a sair de casa para não correr o risco da televisão estar ligada 24 horas por dia, substituindo todo e qualquer estimulo que ele possa receber de outras atividades.
Comecei a ler muito mais desde que fui mãe. Foi uma decisão intencional, para que a criança que divide casa comigo me visse mais vezes agarrada a livros do que ao telemóvel. Lendo eu muito, assusta-me pensar que, mesmo assim, o telemóvel ganha a batalha.
Se eu, que nasci livre de ecrãs e que só na adolescência os vi tomar a vida das pessoas, tenho dificuldade em encontrar formas de viver sem os seus constantes estímulos, como estará formatado o cérebro de alguém que nasceu a olhar em volta e ver um ecrã no fim de cada corpo? Como um ponto final numa frase que se escreveu sem querer.
Em alturas específicas da minha vida, pelo cansaço, pela indisponibilidade e, muitas vezes, pela preguiça, recorri aos ecrãs para entreter o meu filho e ter a tão viciante calma que vem atrelada a isso. Vi a dependência crescer nele e, com isso, a alteração de comportamentos e reações. Não me consegui impedir de pensar “ele é um adito a heroína e eu sou a pior mãe do mundo”.
Voltando ao peso insuportável de se ser uma mãe que se importa, de todas as vezes que vi a dependência ganhar força, arranjei formas de o contrariar. Por ele e por mim. Ser mãe é também, quase sempre, um ato de egocentrismo. Não quero um filho dependente de algo prejudicial, porque isso vai dizer mais sobre mim do que sobre ele. E claro, não o quero também porque o meu objetivo sempre foi criar a pessoa mais saudável e feliz do mundo inteiro. Acertar em tudo, como já disse, mesmo sabendo que não é possível.
Trazer um filho ao mundo é olhar de frente para uma impossibilidade e fintar-lhe os movimentos. Enganá-la a ela e a nós próprios, fingindo ser possível que o nosso filho seja o primeiro da Humanidade a não ter qualquer tipo de maleitas ou traumas. Por mais alucinada que possa ser essa forma de pensar, acho que é um dos únicos pontos de partida para se estar inteiramente nisto de fazer surgir uma pessoa do zero. Sei que falho todos os dias e que acertar em tudo é uma miragem. Sei também que vou continuar a tentar. Sou mãe.
Imagem de capa por Schmooster
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