Tempo de leitura: 4 minutos

Trabalho como psicóloga numa instituição, maioritariamente com a população idosa. O tema sobre o qual me irei debruçar surgiu neste contexto, durante a missa mensal que se costuma organizar na instituição. O senhor padre da paróquia leu o sermão e de seguida partilhou uma reflexão com quem o ouvia: “Antigamente, as pessoas ajudavam-se umas às outras. Agora já não se vê essa preocupação com o outro, são todos egocentristas”. Após esta afirmação, todos os utentes acenaram afirmativamente com a cabeça.

Já eu, apanhei-me a pensar naquilo que fora dito, e em como não concordava em nada. É verdade que, antigamente, poderia existir mais interação entre vizinhos, ou dentro de uma comunidade, por não existirem meios de comunicação facilitados. Mas, atualmente, é rara a vez que vejo alguém recusar ajudar outrem, se lhe for pedida essa ajuda. Esta espiral de pensamento levou-me ao cerne da questão: até onde é que romantizamos o passado? Que influência tem isto no nosso dia-a-dia?

Quando se fala das épocas passadas, parece existir uma certa idealização. Parece que se olha para o passado através de uma lente que filtra e que permite ver unicamente o lado positivo, esquecendo os problemas sociais, económicos e políticos que existiam. Possivelmente, até se esquecem das dificuldades que passaram dentro das próprias casas, fossem estas económicas ou mesmo relacionadas com algum tipo de violência – que, aliás, é extremamente normalizado no discurso da população mais velha.

Agora, perguntam vocês: Mas, Ana, o que queres transmitir com este tema? Quero convidar-vos a refletir sobre o impacto psicológico e comportamental que esta romantização do passado pode ter no nosso presente.

Primeiramente, traz-nos insatisfação com a nossa vida atual. Se estamos consistentemente pautados por um discurso de que “antes é que era bom”, iremos reforçar a ideia de que a nossa vida atual não é positiva. Consequentemente, trará efeitos negativos à nossa saúde mental. Se estivermos sempre agarrados a um passado idílico, a vida não avança. Será para nós difícil projetar o futuro de forma positiva e ficaremos mais resistentes a mudanças sociais.

Relativamente ao último ponto referido, outra consequência que a romantização dos tempos antigos pode trazer está ligada à área social e política. Se estamos constantemente a recordar o passado como um tempo perfeito, podemos correr o risco de aderir a políticas e ordens sociais retrógradas, de forma a procurar a restauração de uma era passada. Se virmos as notícias, podemos confirmar que isto é verdade e acontece.

Voltamos a ver questões como o aborto, o feminismo, a identidade de género e sexualidade a serem questionadas em pleno século XXI, devido a discursos de propaganda política saudosista (“Make America Great Again”).

A acrescentar à lista das consequências, podemos referir as alterações ou omissões da História. Certos períodos do passado, embora vistos como melhores e mais simples, também tinham problemas graves que hoje seriam, ou deveriam ser, inaceitáveis. Aqui podemos referir a falta dos direitos dos trabalhadores, a desigualdade de género, o racismo e xenofobia, a homofobia e a violência doméstica – já referida neste texto como normalizada entre a população mais velha.

Todas estas consequências têm implicações psicológicas para todos nós. Quem romantiza o passado, vive desconectado do presente, afetando o seu bem-estar emocional, e luta para que seja como antigamente. Para os restantes, o seu lugar na sociedade começa a ser questionado. Gostava que refletissem sobre quantos dos problemas mencionados estão a voltar a surgir com um impacto imenso na sociedade.

Claro que, com isto, não quer dizer que o passado não tenha tido os seus lados positivos. Teve. Mas o presente também tem. Temos é de fazer o esforço de adotar ideias realistas e sóbrias sobre o passado e o presente, e não acreditar que antigamente é que era um mar de rosas. Perceber que, no passado, podíamos pedir farinha ao vizinho, e que hoje também o podemos fazer. Perceber que, no passado, era mais fácil comprar uma casa, e que hoje já é algo que muitos não conseguem fazer. Perceber que, no passado, não tínhamos tanta facilidade de comunicar com quem está longe, e hoje temos essa possibilidade à distância de um clique.

O que podemos fazer hoje para tornar a nossa realidade num lugar melhor, para deixar de ser necessário fantasiar sobre o passado?

Partilha este artigo:

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.