Factos: morreu um cidadão português. À mão de um agente da Polícia de Segurança Pública (PSP). Num Estado de direito, a competência das nossas forças de segurança não passa, ainda, por julgar e executar a pena, no local do alegado crime. É, antes de mais, garantir a segurança pública, dos órgãos de soberania e dos cidadãos.
Odair Moniz tinha cadastro e, inclusivamente, esteve preso. A CNN Portugal apurou que praticou crimes violentos, assaltos à mão armada e tráfico de droga. Estava muito longe de ser um cidadão exemplar. Contudo, mais do que o que fez Odair Moniz no passado, interessa saber o que fez na noite de 21 de outubro para que o desfecho tenha sido a sua morte.
Concorde-se ou não, a pena máxima em Portugal são 25 anos de prisão. Odair Moniz exibia, nas palavras da PSP, um “comportamento suspeito” e resistiu à detenção. Interessava também sabermos qual foi o comportamento de Odair Moniz que levantou suspeição da polícia. O carro em que seguia já sabemos que era seu. Apesar de treinados, em maioria e na plenitude das suas forças físicas, os dois jovens agentes não conseguiram imobilizar e deter Odair Moniz. Até que ponto terão efetivamente esgotado os seus recursos, antes de um deles recorrer a meios letais? Parece inquestionável que as circunstâncias até agora conhecidas são conducentes à ideia de que poderá ter havido má conduta e uso desproporcional da força policial e que esta deve ser investigada.
1 – Ultrapassando largamente aquela que é a sua primeira função e chegando a um extremo que tem de ser exceção, um agente da PSP provocou a morte a um cidadão – cadastrado, mas que a 21 de outubro não foi apanhado em flagrante delito, nem formalmente acusado pela prática de qualquer crime. Exibia um “comportamento suspeito” e resistiu à detenção. Como todos os dias, certamente, acontece com outros cidadãos.
2 – Num primeiro comunicado, a PSP declarou que Odair Moniz empunhava uma arma branca, o que veio depois a desmentir. Estava na posse de uma arma branca, mas esta estava guardada numa bolsa encontrada já depois dos disparos que lhe tiraram a vida, nunca chegou a ser empunhada. Em minoria e desarmado, e apesar de ter alegadamente entrado em confronto físico com os agentes da PSP, Odair Moniz não parece estar em posição de ser uma efetiva ameaça à ordem pública ou à vida dos dois agentes envolvidos.
3 – O primeiro comunicado da PSP garantia que Odair Moniz havia sido prontamente assistido no local. No entanto, um vídeo divulgado pela Visão mostrou que não foi assim. Depois dos disparos, nenhum dos agentes tentou qualquer manobra de reanimação junto do seu corpo. Só volvidos vários minutos e só perante os civis que filmavam a ocorrência num prédio próximo os polícias verificaram o pulso da vítima.
4 – Ambos os agentes tinham recentemente concluído a sua formação prática. Aquele que desferiu os disparos tinha somente 27 anos, e está há um ano a exercer na PSP. O colega que o acompanhava tinha apenas mais dois anos de serviço. É seguro concluir que nenhum deles é um profissional experiente. Se deverão patrulhar à noite um bairro tido como problemático, essa é, claramente, uma questão que pode condicionar o desfecho de histórias como esta.
Bastava um destes pontos para que um inquérito tivesse de ser aberto. Mas são quatro. Experientes ou não, falamos de efetivos da PSP e é por isso mais do que óbvio, atendendo aos factos e às contradições que emergiram, que o agente que disparou contra Odair Moniz tenha de ser constituído arguido. Não pode ser de outra forma num Estado de direito. O caso reveste-se de vários sinais que indiciam uso desproporcional da força policial, com recurso a meios letais eventualmente não justificados, em excessiva e não legítima defesa.
Sim, Odair Moniz era um homem com cadastro e estava, como disse André Ventura, “disponível para desobedecer à ordem e à autoridade policial”. Por isso, morreu. Do mesmo modo, como líder da terceira maior força política em Portugal, André Ventura está disponível para agraciar este agente da PSP, mesmo antes de saber o que aconteceu. Por isso, o Chega devia também morrer politicamente.
Ficámos a saber que André Ventura e o Chega defendem uma polícia que possa executar cidadãos – e mais, que por isso os agentes devem ser condecorados. Antes mesmo do apuramento dos factos, André Ventura e o Chega gostariam que aplaudíssemos a atuação da polícia. Denotam coerência, porque a esta hora estarão a ver os noticiários e a bater palmas.
Comentando o caso na RTP, Pedro Pinto, líder parlamentar do Chega, afirmou que “se a polícia atirasse mais a matar, o país estava em ordem”. O Chega provou, mais uma vez, que não tem lugar no parlamento português, numa sociedade democrática e que pugne pela justiça. Todos os que lhe confiam o voto devem estar profundamente envergonhados, independentemente dos factos que venham a ser apurados.
Em 2018, um relatório da Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância (ECRI) sinalizou a infiltração de elementos de extrema-direita na polícia portuguesa, apontando casos de evidente violência policial sobre minorias étnicas. Com conclusões semelhantes apontando às nossas forças de segurança, existem outros relatórios emitidos por organismos internacionais relevantes e credíveis, como a Amnistia Internacional, a Rede Europeia Contra o Racismo, o Comité da ONU contra a Tortura ou o Grupo de Trabalho da ONU sobre Pessoas de Descendência Africana.
Em julho de 2023, o Público divulgou um relatório norte-americano, do Projeto Global Contra o Ódio e Extremismo (GPHAE), que colocou o Chega e a sua juventude partidária do lado de organizações como os Proud Boys, Hammerskins ou o Movimento Social Nacionalista, sinalizando-os como coletivos de “ódio” e de “extrema-direita radical”. A rápida tomada de posição de André Ventura e Pedro Pinto perante este caso encaixa num ódio irracional, que abdica da verdade e que vem legitimar as suspeitas de ligação do Chega a organizações de extrema-direita – e Odair Moniz até podia não ter cadastro, residir na Quinta da Marinha e ser branco e loiro de olhos azuis. Os objetivos da extrema-direita, internacionalmente muito coesa e organizada, vão muito além da supremacia racial na origem do nazismo. Mas Odair tinha cadastro, era negro e residia no bairro do Zambujal.
A reação do Chega à morte de Odair Moniz é abjeta. Será também irresponsável? Relatórios como os da ECRI e do GPHAE devem ser levados a sério. Estarão a chegar (não, a escolha do verbo não é inocente) à nossa polícia elementos de organizações extremistas? O direito às dúvidas é isso mesmo, um direito. Uma coisa é certa: se há partido político que beneficia de tudo o que está a acontecer e de uma sociedade cada vez mais fraturada, esse partido é claramente o Chega. Basta recordar que episódios como este alicerçaram a ascensão de Marine Le Pen, em França. E os bandos de jovens – uns revoltados, outros felizes com a morte de Odair Moniz, com ou sem razão, cientes disso ou não, cultivam nas ruas da Grande Lisboa as sementes do ódio que alimentam aqueles 50 lugares no parlamento português.
Tiago Mota
Imagem de capa por JnpoJuwan
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