“O essencial, o que tem a ver com um imaginário genuinamente nosso, está devidamente salvaguardado”. Terá sido o melhor que ocorreu dizer a João César Monteiro, cineasta português, tão controverso como mítico, através de um texto-carta, dirigido a Carlos de Oliveira, a quem o filme Silvestre (1981) é dedicado. A primeira fase da sua obra, antes de embarcar à procura de um encontro com o ser ‘alter-ego’ João de Deus, foi marcada por um genuíno interesse em regressar às origens daquilo que podemos considerar a portugalidade. Um dos dois redutos a que recorre para edificar este filme é da autoria de Almeida Garrett: “A Donzela que vai à Guerra”. Reduto, sim, provavelmente porque aquilo que ambos estes criadores pretendiam, um como representante do Romantismo português e outro como irreverente realizador, era construir uma fortificação no interior da qual se pudessem preservar as nossas raízes.
Enaltecer o povo e a cultura através da recolha e transmissão de histórias da tradição oral portuguesa.
É possível, no entanto, que nos sintamos desavindos com a nossa nação. Pelas dificuldades que nos impõe, pelos problemas que nos cria, pelas fracas oportunidades que nos proporciona, pelos sonhos que nos mata e pela desesperança penosa que em nós é capaz de plantar e que nos pode obrigar a emigrar. Contudo, não creio que nada disto seja incompatível com a adoração daquilo que é nosso. E enalteço a perfeita escolha dos três vocábulos: “imaginário genuinamente nosso”. Algo que só existe no campo da imaginação, ou que só através dela se pode alcançar, não tendo sido anteriormente vítima de qualquer tipo de adulteração ou corrupção, dado que é puro, sincero, franco, e que, também por isso, nos pertence. Acredito que seria difícil encontrar melhor forma de definir o ato de desenvolver um argumento em torno de histórias da tradição oral, onde quem conta acrescenta sempre um ponto, não tendo João César Monteiro deixado de o fazer também.
A abordagem artística deste filme faz com que nos questionemos amiúde acerca de estarmos a visualizar um produto da sétima arte ou uma peça de teatro. Cenários irreais, pintados sobre tela, arbustos claramente falsos a contrastar com vestuários típicos da época medieval, tempo em que decorre a ação. Tudo isto delicadamente misturado com planos reais, alguns bucólicos, como o rio sob uma luz avermelhada, sobretudo no último terço do filme. A iluminação é teatral, parecendo ter sido obtida com fortes e pungentes holofotes, mas a atuação é aquilo que mais marca aquilo que com este filme se procurou fazer: uma apresentação em detrimento da representação. De facto, e isto surge tipicamente no teatro, os atores são como que acidentalmente captados pelos nossos olhos, sendo que, por este exato motivo, ninguém vê o mesmo, dado que pessoas diferentes escolhem olhar para sítios distintos. No cinema, com planos mais fechados, é possível conduzir a audiência exatamente para onde o realizador deseja. João César abre os planos, torna-os semelhantes a pinturas a óleo sobre tela, permitindo pausas: exemplo paradigmático apresentado na cena da morte do dragão, em que o plano chega mesmo a imobilizar-se, assim como o seu conteúdo, inclusivamente as personagens, deixando a impressão de estarmos a apreciar um quadro.
Foi com esta sobrecarga luminosa e plástica que João César procurou edificar um objeto de arte, enquanto enaltece as nossas expressões idiomáticas, trejeitos linguísticos frequentemente engraçados, que só uma língua bela como a portuguesa seria capaz de oferecer. Silvestre (1981) como reduto, verdadeira catedral onde se reúnem todos os temas dessa cultura popular. Acredito que João César Monteiro não tentou fazer nada que não fosse uma bonita ode a Portugal, apesar de, mais tarde, se ter desavindo com a nossa nação. Mas Branca de Neve (2000) e a indignação popular que gerou ficará para um próximo artigo, onde refletirei sobre o modo como o espetador foi, até pelo realizador assumido, “aqui e agora transformado em espetáculo”.
Pintura de capa por José Malhoa
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