Estamos prestes a entrar numa nova era, na qual o mundo se espraia num ciclo destravado de questões e respostas – como se fosse um programa da tarde que nunca acaba, mas sem apresentador, direção, prémios ou lógica aparente. Esta nova era motiva o espoletar de um paradoxo tão surreal como ir ao supermercado sem máscaras e luvas em abril de 2020: nunca se falou tanto, porém, nunca se comunicou tão pouco, de tal forma que o ato significativo de “escutar” está a perder terreno para o ato mais mecânico e superficial de “ouvir”. O “escutar”, velho amigo da atenção e da empatia, está a dar lugar a um “ouvir” desprovido de conexão e de entendimento. É um “ouvir” que ecoa, no topo de uma montanha, como um nada cheio de som e sem a vertente da verdadeira comunicação. É o equivalente a responder “sim” a uma questão sem ter ouvido metade do que foi dito.
E a comunicação? Ah, sim, aquela coisa que, antigamente, tinha um forte significado. Hoje parece que está a passar por uma crise de identidade e surge como um saco repleto de palavras vazias – é como receber um e-mail de duas mil palavras e, no fim, chegar à conclusão de que aquilo que interessava mesmo saber estava no assunto. E porque é que isso acontece? Porque estamos numa era marcada pela gratificação e satisfação imediata, na qual a profundidade viu-se sacrificada em favor da rapidez. Ninguém tem tempo para a profundidade, porque esta exige dedicação e paciência (muita paciência). O pior de tudo é que a falta de profundidade não se limita ao que ouvimos. Não, meus amigos, estende-se também à dimensão visual, no sentido de que nunca se viu tanto, mas nunca se analisou tão pouco.
A maneira como olhamos para o mundo, atualmente, é mais vasta do que nunca. Estamos presos a ecrãs e somos alimentados por algoritmos que parecem saber mais sobre nós do que nós mesmos – nomeadamente quando vamos desejar comer uma pizza com extra queijo às 2h da manhã. E o que é a contemplação, no fim de contas? Um exercício que os nossos bisavós praticavam e que hoje é tão desvalorizado como a utilização de cassetes para ouvir música.
E não para por aí, obviamente. No horizonte desta superficialidade, assistimos a uma mudança nas nossas expetativas em relação ao mundo. Ficamos à espera daquilo que o mundo nos oferece, enquanto damos tão pouco ao mundo. Parece jacobice exigirmos externamente tanto, quando internamente exigimos tão pouco de nós. Há pessoas que gostam de chamar a isto de ironia; eu prefiro chamar de insciência.
Agora, segurem os chapéus, porque há uma esperança! Sim, nem tudo está perdido, há luz no fim do túnel (e não, não é o sinal de rede 4G a voltar). No meio da superficialidade e do banzé de informações que promovem um número incontável de sinapses, existem pessoas que conseguem, ainda assim, encontrar significado e conteúdo nas interações que estabelecem. Essas pessoas, em vez de se contentarem com um “ouvir” e um “ver” vazios, dedicam-se a “escutar” e a “ver” na forma mais significante possível. São pessoas assim que, por meio de um compromisso com a profundidade, têm a possibilidade de transformar, não o mundo inteiro – acalmem-se, não estamos num filme da Marvel –, mas, pelo menos, o círculo à sua volta, através de uma conversa que não termine com “kkk”. São estes artesãos da Idade Global que mantêm a capacidade de moldar a comunicação e as relações tendo por base um propósito significativo.
José Saramago, mestre das metáforas certeiras, disse que “a única maneira de liquidar o dragão é cortar-lhe a cabeça, aparar-lhe as unhas não serve de nada”. E não podia estar mais certo! Não adianta recorrer a pequenas mudanças, como mudar o ‘wallpaper’ do telemóvel para uma frase que leram num pacote de açúcar e achar que, de um momento para o outro, vão virar Buda e tornar-se mais conscientes da vossa presença no mundo. Desculpem desiludir-vos, mas não vão. É necessária uma transformação profunda na forma como interagimos com os nossos pares.
Assim, da próxima vez que sentirmos que estamos a viver dentro de um episódio de Black Mirror, devemos lembrar-nos: o verdadeiro segredo está em “ver” e “escutar” e, quem sabe, desligar um pouco os dados móveis de vez em quando.
Pintura de capa por Édouard Manet
Partilha este artigo:
Deixe um comentário