Enclausurada entre as paredes do oceano, no dia 13 de setembro de 1923, na Fajã de Baixo, em São Miguel, nascia Natália de Oliveira Correia. Vindo para a capital em tenra idade, Natália perfilou-se como uma mulher carismática e controversa, vivendo inconformada com as convenções socialmente dominantes. Apesar de singular na personalidade e no meio cultural, a escritora açoriana teve como maior reconhecimento o lugar cimeiro que ocupou no rol de autores com mais obras proibidas durante o Estado Novo.
Contraditória e insubmissa, na sua obra discutiu questões como o corpo, a sexualidade, o amor, a escrita, o poder e a natureza. Durante o regime salazarista pugnou pela liberdade de expressão, criticou a hipocrisia de costumes, a fachada moralista que escondia escândalos e silenciava abusos.
Contrariando o papel da mulher salazarista, Natália não se adaptou à vida do lar e, por conseguinte, às suas atividades rotineiras, afirmando que essas não lhe permitiam desenvolver “o seu espírito de poeta”. Nesse contexto, teve vários casamentos, sem gerar um único filho, tendo realizado, inclusive, vários abortos, numa época em que a prática era ilegal.
À medida que a censura salazarista a amordaçava, Natália voltou a sua atenção para o papel da mulher e denunciou a redução das liberdades e direitos. Nesse contexto, como escritora do jornal semanal O Sol (a partir de 1946), Natália escreveu vários artigos sob o título “Breve História da Mulher”, centrando o debate no papel da mulher, enfrentando, assim, um dos tabus do regime. Natália via na independência económica, por intermédio do trabalho, o único garante da emancipação feminina. Além disso, tinha uma visão matriarcal da sociedade, defendendo a mulher como matriz da mesma e expoente da liberdade emocional. Afirmava que “É no paradigma da Grande Mãe que vejo a fonte cultural da mulher (…)”.
No pós-Segunda Guerra Mundial, Natália dá os seus primeiros passos na arena política, nomeadamente na oposição, possivelmente associando-se às listas do MUD (Movimento de Unidade Democrática). Em 1949 e 1958, apoiou as candidaturas às presidências das forças da oposição, nomeadamente Norton de Matos e Humberto Delgado, respetivamente. Nos anos 1950 e 1960, dá-se uma viragem na atividade de Natália no seio da oposição, desafiando o regime abertamente. A resposta corpulenta da ditadura traduziu-se na apreensão de cinco dos oito livros que publicou, com especial destaque para a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica. Esta última obra resultou num longo e polémico processo policial, fortemente politizado. Em março de 1970, alegadamente, foi provado no Tribunal Plenário Criminal de Lisboa o caráter pornográfico e obsceno da obra, e Natália foi condenada a noventa dias de prisão, substituídos por igual período de multa. Esta decisão revelou-se um duro golpe no ego inflamado da autora, mas não a levou, como afirmava, a “exibir as medalhas de vítima da repressão”.
Nos anos finais da ditadura, Natália abriu o famoso Botequim. Junto ao miradouro da Graça, instaurou-se um espaço de convívio e tertúlia literária. Além disso, o Botequim, como refere António Vilhena, foi o palco de Natália, a sua “sacristia de confidências” de toda uma tribo que se reunia à sua volta. Mais tarde, os ventos da democracia transformaram o Botequim num espaço importante de conspirações políticas, onde se improvisavam e desfaziam governos.
Para Natália, os “embriagantes anos da liberdade” trazidos pelo 25 de Abril de 1974 levaram-na a uma espécie de “osmose orgástica”. No entanto, a liberdade e a democracia, que tanto custaram a ser construídas, logo começaram a descambar. Como afirmava, a “farsa de engolir uma revolução fechou os olhos a um totalitarismo moribundo para engordar outro.” No final de contas, Natália sempre lutou pela democracia e liberdade e, apesar de ser apelidada de contrarrevolucionária pelos setores mais à esquerda, era, de forma simplista, apenas contra o rumo que a revolução estava a tomar. Deste modo, não teve medo de denunciar em praça pública a “farsa revolucionária”, que queria eleger novamente a intolerância e a tesoura da censura para reinar.
Natália nunca se alinhou, em absoluto, a um campo político-ideológico, todavia, essa característica não a impediu de ter uma voz crítica e fundamentada.
Preocupava-se mais com a defesa dos seus ideais do que com a sua posição ideológica, e sabia que, apesar dos seus dons de oratória, o que a fascinava era a intriga política. Dito isto, inicialmente apoiou o PS, pois via-o como o principal tampão contra a extrema-esquerda. Mais tarde, a amizade e o carinho que nutria por Sá Carneiro levaram-na a ser militante do PPD e eleita deputada em 1980. Contudo, a posição conservadora do partido e as polémicas que colecionou internamente fizeram com que se tornasse independente durante a legislatura. Mais tarde, a amizade com Ramalho Eanes levou a que fosse novamente eleita deputada em 1987, como independente pelo PRD, encerrando a sua jornada parlamentar em 1991.
Recuando um pouco atrás, o choque com o PPD ficou evidente durante a votação da proposta do PCP que discutia, pela primeira vez, a interrupção voluntária da gravidez. Natália, desafiando a disciplina parlamentar, foi a única deputada do PSD a votar a favor da proposta comunista, alinhando-se assim com os seus ideais: a defesa da mulher e dos seus direitos. Neste debate, ficou célebre o seu poema humorístico “Já que o coito – diz o Morgado”, que satirizava a posição conservadora do deputado do CDS João Morgado, que argumentou: “O ato sexual é para ter filhos”.
Como se pode analisar, a liberdade que a democracia trouxe não diminuiu o perfil polemista de Natália. Em toda a sua atividade parlamentar, mostrou-se enérgica na defesa da cultura, em geral, o que legitimava, por conseguinte, a sua faceta eurocética. De facto, via a entrada na então CEE como um atentado ao “espírito europeu”, onde persistia uma “agremiação de culturas e diferenças”. Por outras palavras, via a CEE como a rampa de lançamento de uma homogeneização cultural. Em alternativa, defendia a construção de uma “comunidade euro-afro-americana, uma comunidade de cultura ibérica.”
Por fim, Natália foi, por uns, amada; por outros, odiada; no final das contas, talvez apenas incompreendida. A doença tomou conta dela, e a morte levou-a a 16 de março de 1993. A espessura dos anos fez descer uma névoa sobre o seu legado, o que se deve muito à sua peculiar personalidade, mas também às doces polémicas, que para Natália não eram mais do que a defesa dos seus ideais. No final das contas, Natália foi (re)construtora de ideais e desmistificadora de mitos, feriu a sociedade portuguesa onde mais lhe doía: a moral caduca. Para o futuro, fica uma personagem visionária, que lutou pela liberdade e alargou a cultura, sem nunca se vergar a ninguém.
Imagem de capa: Bottelho, sobre licença Creative Commons
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