Por vezes, num mercado, um trabalhador oferece uma amostra de determinado produto para que os consumidores experimentem e comprem em seguida. Quando isto acontece, se gostamos, podemos comprar o produto, mas nada nos obriga a isso, se não quisermos. Se não gostamos, aí é certo que não o compraremos. Seja como for, temos sempre escolha.
É com alguma pena que digo, no entanto, que o mesmo não vale em relação à XVI legislatura da Terceira República Portuguesa. Os resultados eleitorais de 10 de março presentearam-nos com uma amostra daquilo que será a nova legislatura no Palácio de São Bento. Foi uma experiência inacreditável e indescritível, mas não de forma positiva.
A nossa amostra começa na campanha eleitoral. Luís Montenegro, homem de poucas palavras no que tocava a acordos parlamentares fora da Aliança Democrática, jurava piamente que nunca se aliaria ao partido Chega, de André Ventura, para fazer passar mais facilmente o programa da sua coligação na Assembleia da República, para grande tristeza deste último. Ainda que muitos dos adversários à esquerda o tomassem com muito ceticismo, foi com este “não é não” à extrema-direita que Montenegro esperou conquistar os votos dos portugueses.
Andamos o filme um pouco à frente e temos agora a estreita vitória da AD face ao PS. Os 80 deputados do PSD e CDS não são suficientes para obterem as maiorias absolutas fáceis no hemiciclo, e a primeira prova do quão preocupante e desconcertante isto é dá-se no epicentro da nossa amostra: a eleição do presidente da Assembleia da República.
Circo, creche, recreio. Muitos foram os adjetivos semelhantes que ouvimos por aí a descrever o imbróglio que deixou o país perplexo. Não foi só uma. Não foram duas. Nem sequer foram três. Foram quatro. Foram necessárias quatro votações para se chegar a um consenso sobre quem iria presidir ao hemiciclo. A XVI legislatura arranca com Aguiar-Branco, candidato único a presidente da Assembleia da República, a ser chumbado com apenas 89 votos a favor.
Mas o que se passou afinal? O que aconteceu ao acordo entre o PSD e o Chega que a comunicação social tinha noticiado na véspera do primeiro dia da legislatura? Um acordo que, supostamente, serviria para aprovar a eleição de José Pedro Aguiar-Branco à presidência da AR, em troca dos votos do PSD para aprovar Diogo Pacheco de Amorim como um dos vice-presidentes. Um acordo que faria todo o sentido, já que, mesmo com a ajuda dos oito deputados da Iniciativa Liberal, Montenegro precisaria de mais votos para eleger o seu candidato, de forma a alcançar a maioria.
Plot twist, como se costuma dizer. Foi traição? Nunca existiu acordo? Foi uma estratégia secreta? Uns dizem que foi o diz-que-disse, outros que foram conversas paralelas. Bem, fica o mistério. O que sabemos e vimos com os nossos próprios olhos é que foi o caos.
O certo é que assistimos a algo cómico. Vimos a birra de André Ventura por não ter conseguido o acordo que tanto queria com o PSD para se juntar ao governo. Testemunhamos à demonstração de Ventura que, sem ele e os restantes 49 deputados da sua bancada, Luís Montenegro nada conseguiria no hemiciclo, a não ser que se aliasse à sua esquerda.
Dito e feito. Ao segundo dia de votações e à quarta tentativa de eleição, Pedro Nuno Santos, aparentemente o único adulto na sala, teve de intervir e dar a mão a Luís Montenegro para acabar com o bloqueio no parlamento, solucionando-o com a divisão do termo da presidência da AR em dois anos para cada um dos dois partidos, começando com Aguiar-Branco. A solução encontrada apenas torna visível a profunda divisão que as eleições legislativas deixaram no país e na política portuguesa.
Esta necessidade de o PS salvar o dia nunca deveria ter acontecido. Luís Montenegro mostrou-se incapaz de negociar e acordar com os partidos que o rodeiam. O líder do PSD demonstrou-se fraco também na sua relação com o Chega. Mesmo depois de quatro votações em que o Chega amuou e não votou a favor do candidato do PSD, este fez o oposto. Montenegro, a querer ser homem de palavra após afirmar que aprovaria todos os outros candidatos aos cargos de vice-presidentes e secretários, anunciou publicamente a intenção de voto favorável de Diogo Pacheco de Amorim, do Chega, apesar das ligações deste à organização terrorista Movimento Democrático de Libertação de Portugal (MDLP).
Se realmente chegou a haver acordo entre PSD e Chega, só o primeiro se mostrou fiel ao que disse. À primeira oportunidade que teve, Luís Montenegro deu provas de que não quer fechar a porta ao Chega, mostrando, assim, que está aberto a negociações com este. Parece que o “não é não” talvez possa ser um sim.
A eleição do presidente da Assembleia da República demorou, desnecessariamente, dois dias, causando furor na política e na sociedade portuguesa. A XVI legislatura mal começou e deu-nos uma amostra daquilo que virá: mais impasses, imbróglios, tumultos e reviravoltas, com o Chega sempre à espreita para tentar agarrar o poder de uma forma ou outra e o PSD sem saber muito bem para onde se virar.
Acabando como começámos, a diferença entre as amostras de supermercado e a amostra que esta legislatura nos deu a provar é que as primeiras podemos sempre deitar fora se não nos agradarem ou até nunca mais provar; já a segunda obriga o país a viver com a desorganização e embrulhada que marcarão os próximos tempos na Assembleia da República. Pelo menos, por enquanto… Se cada votação no parlamento for como esta e se Marcelo Rebelo de Sousa continuar a ser coerente, é seguro dizer que a XVI legislatura é um produto que, em breve, será descontinuado.
Imagem de capa: Concepcion Amat Ortas, sobre licença Creative Commons
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